Confissões de Um Travesti
“Tenho quarenta e três anos, sou casado e pai de família. (...) Nem sempre vivi fascinado pela roupa feminina. Durante muitos anos, até ao meu casamento, eram só as cuecas delas que me atraíam. Embora ainda não tivesse chegado, talvez, a altura de vestir toda a toilette de uma mulher, esse desejo crescia já em mim e esperava a ocasião para se manifestar.”
A Orfeu Negro apresenta-nos Confissões de um Travesti, obra publicada originalmente na coleção francófona «Les grandes études françaises de psychiatrie», compilada por Éric Losfeld, em 1956, e agora traduzida em português por Jorge Lima Alvez e ilustrações de João Mário Pinto.
Versando sobre o tema do transformismo, a vivência de género fora do tradicional sistema binário de sexo/género, Éric Losfeld traz na publicação desta obra não só a promiscuidade e transgressão textual aos padrões conservadores da época como não se conhecendo a autoria das memórias do narrador, envolve-nos num clima de intriga e mistério quanto à veracidade dos factos narrados. Verosímil ou não, esta é uma obra que celebra a liberdade sexual, a diversidade de identidades e expressões corporais de (trans)género.
Irreverente, fundador da editora Le Terrain Vague, a carreira de Losfeld foi marcada por publicações de cariz erótico que colidiram com as asfixiantes regras do bom senso e dos costumes impostos pela República Francesa no pós-guerra. Sobre o seu papel no desenho deste livro continuamos a saber muito pouco, mas lendo o epitáfio de Losfeld percebemos a sua a filosofia de vida: «Tudo o que ele editava tinha o sopro da liberdade.»
É precisamente sobre liberdade, sobre o direito ao livre exercício da vida sexual, da coexistência do feminino e do masculino na construção da identidade individual como da estética corporal, que esta obra serve de mote ao longo caminho de construção de novas mentalidades iniciado pelos movimentos de libertação sexual dos anos 1960 e 1970. Longe de serem se quer pensados os cruzamentos identitários sobre orientação sexual, identidade de género e expressão de género, Confissões de um Travesti, revela através das memórias de um homem anónimo o seu fascínio por lingerie feminina e da prática do travestismo, a dissociação entre orientação sexual e identidade de género.
Casado, pai de família, o narrador confia-nos detalhadamente a sua heterossexualidade no precoce fetiche sentido pelos corpos femininos como no ânimo com que descreve os seus arrojados encontros sexuais. Ensina-nos, também, sobre a plasticidade e hibridismo da expressão de género, da vergonha e humilhação do desejo anal praticado por homens e do pouco espaço social para habitar essas vivências, procurando na sua alienação social, testemunhos de outras pessoas que partilhassem os seus desejos.
Se existe algum instante em que esta obra desaponta, sem desagrado das irreverentes ilustrações de João Mário Pinto, apontaria a desconsideração das fotografias presentes na publicação original do texto em que apresentava a figura travestida deste homem, um elemento gráfico não só que testemunharia a narrativa exposta como completaria o imaginário desta leitura.
Em suma, esta é uma leitura que apesar do desconforto ou excitação provocadas, mostra ser útil para entendermos a distinção entre orientação sexual e identidade de género, da incoerência das interpretações patologizantes que oprimem as identidades trans, assim como da visibilidade da diversidade de identidades e ou expressões de género que testemunham a possibilidade em coabitar simultaneamente o feminino e o masculino em quaisquer dimensões da vida.
Título Original: Les confessions d'un travesti
Editor: Orfeu Negro
Ano: 2019
96 páginas, formato 17 x 24 cm
ISBN 9789898868459
PVP: 15,00€
Daniel Santos Morais é mestre em Sociologia pela Universidade de Coimbra. Feminista, LGBTQIA+, activista pelos Direitos Humanos. Partilha a sua vida entre Coimbra e Viseu.