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Nem na mata se encontram histórias assim

Convivi com um ditador: traçando um perfil da extrema-direita (parte 1)

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Uma história contada em três partes:

 

Nasci numa família multicultural, mãe africana e pai português. A minha mãe poderia passar por mulher branca, não fosse por abrir a boca e sair-lhe um sotaque angolano. Na verdade, isto não importaria para nada, se o meu pai não fosse um racista camuflado. Estranho isto de casar com uma mulher mestiça, quando se é racista, contudo, não difere muito de se ser homofóbico quando se tem uma filha lésbica ou quando se diz ser uma «pessoa de bem», quando se é suspeito de violência doméstica. Aliás, tal como uma doença agressiva, o preconceito multiplica-se, assumindo diferentes variantes, por isso é bastante comum vermos alguém padecer de mais que um, a par de uma violência extrema e incompreensível. 

Em 1994, vinte anos decorridos do 25 de Abril, recordo-me das inúmeras actividades que ocorreram na minha escola, para que nós, discentes, percebêssemos o que tinha acontecido no período da ditadura. Todas as minhas professoras tinham vivido esses tempos, o que lhes atribuía um estatuto diferente, com mais experiência sobre o que era viver sem liberdade. Não era só a professora de História que nos explicava o que tinha sido o Estado Novo e recordo um convidado que nos falou do que era ser um ditador: “Sim, ainda existem muitos ditadores, hoje em dia, estão na fila da compras, a gritar a sua frustração; ou na tasca, a destilar a sua raiva, todos eles como um potencial Hitler ou Salazar, com a única diferença de que não lhes foi concedido qualquer tipo de poder.”

Após esta breve introdução, acompanhem-me nesta minha viagem ao passado, relembrando as conversas mais preconceituosas que experimentei junto do meu pai, e que me levaram a questionar a minha posição no mundo e a forma como eu observava a sociedade.

Racismo

– Olha aquele preto a beijar uma mulher branca. Preto nojento. Não consigo ver isto. Se fosse uma preta com um branco, ainda vá lá, agora isto?!?

A minha mãe permanecia em silêncio, por vezes não falava para evitar discussões. O mesmo acontecia quando passávamos por um carro de luxo, um Mercedes ou um BMW que rivalizasse com o nosso Renault Clio e o meu pai, ao volante, rosnava entredentes:

– Filho da mãe do preto, montado num Mercedes, de certeza que anda a roubar!

Dessa vez a minha mãe disse qualquer coisa como, «olha que a inveja é pecado» e ele continuou:

– Cala-te, os pretos da tua família são todos uns chulos, vivem todos às minhas custas.

A discussão seguiu até que o meu pai esmurrou o tablier e eu rezei, em silêncio, para que a minha mãe não respondesse e que a gritaria cessasse. Até hoje, não entendo por que motivo ele afirmava que os membros da família da minha mãe viviam à sua custa. Tinham fugido da guerra civil e encontravam-se a trabalhar, não constando que ele lhes tivesse emprestado qualquer dinheiro.

Muitas vezes, a minha mãe respondia:

– Não te esqueças que também tens uma irmã preta! – mas ele alegava que não, que a irmã era mulata e que não era a mesma coisa. Era uma confusão pegada, toda esta terminologia racial: preta, mulata, cabrito, mestiço e cafuzo. A mim não me dizia nada, embora fosse assimilando que um preto num BMW seria sempre um ladrão.

Já a questão de ter uma tia mulata era toda uma outra história: a tia Carminda era filha de uma preta, tinha vindo de África na altura em que o meu avô tinha andado por lá, na guerra do Ultramar, sendo que trouxe a filha para ser educada pela madrasta branca, para ter uma vida «decente». O meu pai não tinha ligação à irmã e nunca assisti a qualquer tipo de cumplicidade. O seu discurso racista fechava-se em argumentos como «os pretos são burros, não prestam para a escola, só servem para correr, que nem nadar sabem». Este tipo de comentários foram crescendo na minha mente, acreditando que assim era, pois o meu pai o dizia, ao ponto de, no sexto ano, eu escrever os mesmos argumentos numa composição sobre a escravatura: «se os negros não têm inteligência para estudar, não faz mal, porque são bons no desporto e podem ganhar medalhas olímpicas». Ao receber o teste, recebi também o olhar piedoso da professora, que percebera que as minhas ideias mal-orientadas vinham do pai abusivo, que ia às reuniões de encarregados/as de educação para berrar «umas verdades» à directora de turma.

 

Continua....

 

Leonor Matos