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Convivi com um ditador: traçando um perfil da extrema-direita (parte 3)

violência e machismo

Violência e machismo 

Após esta breve introspecção, não nos surpreendemos se a narrativa se encaminhar para episódios de violência: o xingamento, os palavrões, a chantagem, os ciúmes, os empurrões, o olho negro que a minha mãe assumiu como um choque contra uma porta e todas as escaramuças em que ele se envolveu, em lugares públicos, fosse por que motivo fosse.

– A tua irmã é uma porca, a preta da tua irmã, só te dá conselhos da treta. Diz-me com quem é que estavas a falar ao telefone! – gritos constantes, desconfianças e acusações sem fundamento, embora esta faceta fosse cuidadosamente escondida pelo seu lado bem-falante, que conquistava qualquer público que o escutasse, fosse qual fosse a festa ou o jantar. Muitas das pessoas que o ouviam, não ripostavam, mesmo que ele proferisse alguns absurdos, o que poderia levar-me a crer que concordavam com ele. O assunto era a toxicodependência e a sida, quando estávamos a viver um período tenebroso, relacionado com os altos níveis de contágio e demasiadas mortes. Ele dizia:

– Dar kits para o consumo de droga? Mas eu é que vou pagar pela droga? Se é assim, eu fechava-os a todos numa praça de touros, cercada de arame farpado e todos os dias mandava um helicóptero lançar saquinhos com a droga. Assim iam consumir até se matarem uns aos outros.

Era um espectáculo ouvi-lo, sempre com muitos gestos e com a entoação perfeita. A malta ria-se, contudo, uma prima interveio e procurou argumentar, afinal de contas, o meu pai poderia não concordar com as medidas de combate à pandemia da sida, mas o desrespeito que evidenciava na sua voz era inadmissível. A prima Madalena procurou debater o assunto, porém, ele era implacável e apoiava-se no silêncio da assistência, que se limitava a sorrir quando ele lançava uma piadinha de mau gosto. Ela virava-se de um lado para o outro, esgrimindo uma tentativa de diálogo, porém, sem sucesso. Acabou de lágrimas nos olhos, rendida à frustração, e o meu pai ofereceu-lhe umas palmadinhas nas costas, como se a consolasse por ter perdido uma batalha. Ela tinha os argumentos, mas ele era um fanfarrão e os fanfarrões ganham quase sempre, quando têm o silêncio atento dos demais.

 

Conclusão

Certa vez, num canal de notícias, ouvi uma voz familiar. Reconheci-lhe o tom, a dicção, os termos usados, o vazio de conteúdo, até os mesmos trejeitos de boca. 

«O meu pai fundara um partido?»

Trinta segundos depois, confirmei que se tratava de um André de barba rala, tão semelhante àquela que o meu progenitor usava, trinta anos antes.

Quantos homens como o meu pai saíram das filas do supermercado para ingressar em partidos que pregam o ódio contra as minorias, num discurso esvaziado e repetitivo? Esses tantos que não foram condenados por crime algum, embora contaminem os lugares onde actuam. Em 2022, com a saída de tantos deputados e deputadas que lutavam contra o racismo, a homofobia, a transfobia, a violência de género e tantas outras lutas que ficaram sem uma representação válida e reforçada na Assembleia da República, o que fazer para desmascarar estes agressores que pregam e idealizam um regime fascista? O que proponho com este texto é que nos foquemos na interseccionalidade, uma palavra comprida que dá voz aos diferentes tipos de discriminação e que nos une no objectivo de combater um lado muito agressivo da nossa sociedade, porque os inimigos da democracia nem sempre se escondem e muitos estão sentados no parlamento. 

Eu, que vivi com um «ditador» preconceituoso, reconheço, com alguma angústia, o crescimento desse mesmo ódio, que se multiplica e que encontra eco num perfil extremamente comum e que está a ganhar mais adeptos. As motivações para o voto no partido da extrema-direita são diversas, contudo, há um retrato que se mantém recorrente – o do «ditador sem poder», mas que o busca de modo incessante.

Hoje, declarando-o abertamente, o meu pai apoia o partido do «desventura».

Nenhuma surpresa aqui, exceptuando-se o número crescente de seguidores, que, preconceito a preconceito, temos de desconstruir e combater. 

Cinco no parlamento, mas toda uma multidão na rua.

 

Leonor Matos