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Crítica a Nimona (2023)

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– “E se o contiveres? Se não mudares de forma?
– “Não morria mesmo. Mas não estaria a viver.”

 

Descansa em paz, Blue Sky Studios. O céu azul vive para sempre em Nimona, uma produção que iniciou em 2015 com a compra dos direitos de adaptação de uma graphic novel com o mesmo título, sob o tecto da 20th Century Fox. Uma subsidiária dedicada a obras de animação, responsável pela franchise Ice Age – que salvou a Blue Sky, prestes a ser vendida, em 1999 –, o céu azul é assassinado por uma estrela, em 2019, quando a Disney adquire a 20th Century Fox, e decide nublar esta paisagem. Afinal, esta é desnecessária para uma companhia cujo domínio reside na sua marca visual, no meio da animação. O capitalismo é imune a ratoeiras when you wish upon a star.

Apesar de, neste tempo, Nimona estar perto de concluir a sua produção, o rato – que nos últimos anos insiste em publicitar o seu progresso cinemático na comunidade LGBTQ+ – decidiu que não queria estar envolvido nesta longa-metragem devido aos seus temas queer predominantes. Não existe nenhum arco-íris a rodear este castelo. Cancelado e sem esperança, eis que surge Annapurna Pictures, o estúdio responsável por obras extraordinárias como Her (2013), e If Beale Street Could Talk (2018), para salvar esta história, com distribuição garantida no serviço de streaming da Netflix. O contexto atrás desta produção é suficiente para preencher uma tese, contudo, porquê estes parágrafos dedicados somente ao desenvolvimento desta criação? O que é Nimona? Aliás, quem é Nimona?

Situado num reino futurista medieval, onde os seus habitantes dedicam as suas vidas somente à sua própria protecção, através do Instituto de Cavaleiros Elite, esta é a história de duas personagens a libertarem-se da prisão física e social de uma sociedade restrita por valores antiquados. Prestes a actualizar este mundo para uma nova era, a Rainha Valerin (Lorraine Toussaint) pretende nomear Ballister Boldheart (Riz Ahmed), um homem de honra que luta por esta posição deste criança, como Cavaleiro, sendo o primeiro plebeu com esse cargo. Contudo, quando Boldheart é acusado de um crime que não cometeu, este cavaleiro transforma-se num fugitivo à procura de limpar o seu nome aos olhos deste reino. Neste desespero por comprovar a sua inocência, Ballister é assistido por Nimona (Chloë Grace Moretz), uma estranha adolescente rebelde que consegue mudar de forma, à procura de companhia e uma ligação genuína num mundo que rejeita a sua existência.

Nimona conquista o coração através da sua animação sensacional, personagens divertidas e uma narrativa profundamente comovente que compreende verdadeiramente a mensagem que reside na sua alma. Desde sexualidade, classes sociais até à identidade de género, como a comunidade não-binária ou transgénero, esta é uma alegoria sobre a demanda por aceitação perante uma sociedade que propaga ideias erradas acerca do – supostamente – diferente. Está no seu subtexto, no enredo e nos próprios diálogos: “Promete-me que confias em mim? – Porquê? – Porque se não o fizeres morres no armário.” – admitidamente, alguns mais subtis que outros. A viagem emocional destes protagonistas recusa-se a esconder o seu autêntico significado. Ballister está numa relação amorosa com outro cavaleiro, e, considerado indigno da sua posição por não pertencer à família correta, combate pela sua aprovação neste mundo, disposto a morrer por uma casa que o encara como um vilão. Nimona, rejeitada pela sua transformação física, aceita a sua identidade e cria o seu próprio espaço de humor caótico e irónico, encontrando a felicidade – aliás, o mais próximo desta – distante da população, esforçando-se para encarnar o papel de monstro, que todos acusam Nimona de ser.

O comentário social sucede além de outras criações similares, mantendo uma simplicidade na entrega destas temáticas enquanto preserva, em simultâneo, a sua complexidade, sempre desprovida de conceitos que contrariam a sua visão. Estou a olhar para ti, Zootopia (2016). Nimona nega a versão da Disney de aceitação e respeito, enfrentando a própria fundação e estrutura de uma sociedade para demonstrar a sua responsabilidade nas consequências presentes, questionando o sistema em que estamos inseridos, o seu poder e os motivos atrás da sua edificação, construída para enterrar tudo o que difere da “norma social”. Nimona recusa-se a ficar calada. Recusa-se simplesmente a aceitar. Porque aceitar não é suficiente. É necessário reconhecer a sua humanidade, abraçar a sua pessoa e amar a sua existência. Aceitar permite uma ínfima abertura de espaço para semear ódio, propagar raiva e reter indivíduos satisfeitos com migalhas. Uma imagem que tem impacto numa comunidade ansiosa por ser incluída. Porque quando não temos nada, o mínimo parece “aceitável”.

São ideias expandidas no audiovisual. Nimona combina o medieval com tecnologia actual, e o passado com o futuro; criando um ambiente fantástico e único, que reflecte os temas desta longa-metragem, representando a humanidade com a capacidade de evoluir mesmo numa sociedade atrasada. Além dos cenários, a construção visual segue idêntica lógica emocional, com uma animação estilizada que combina 3D com 2D, o fluído com o geométrico, e o simples com o complexo. Um meio onde as personagens se distinguem do espaço que as rodeia, como, também, conseguem unir-se a este numa única entidade.

Estas imagens peculiares surgem da sua protagonista caótica e repleta de personalidade. Quando a personagem entra em cena, o mundo ganha cores, vida, energia e paixão, ultrapassando os seus percalços narrativos. O mundo é melhor com Nimona. O mundo é melhor com pessoas similares a Nimona. É necessário destacar Chloë Grace Moretz, cuja performance vocal é extraordinária e digna de atenção na temporada de prémios. Riz Ahmed é excelente, sem surpresas, oferecendo um contraste contido à sua parceira expressiva, elaborando, assim, uma dinâmica divertida e especial.

Todavia, inclusão não implica qualidade. Existe sempre o risco, como sucedeu em obras semelhantes, do argumento se perder nas suas intenções, resultando em filmes aborrecidos, condescendentes e teimosamente cerrados na sua mente, impedindo uma audiência alheia a esta temática de entrar na história. Neste sentido, Nimona é um milagre. Uma produção desenvolvida nos últimos anos de um estúdio, cancelada pelo maior nome do cinema, deixada para morrer, que, ainda assim, consegue alcançar os seus objectivos com uma estranha delicadeza metálica.

“Nem todos conseguem o seu final feliz”. A Blue Sky permanece fechada, e apesar desta longa-metragem encontrar uma casa na Netflix, o serviço de streaming simplesmente enterrou esta obra no algoritmo, isenta de marketing significante ou de espaço apropriado para brilhar. A sua alegoria ultrapassa a própria narrativa, dedilhando a sua distribuição. Ser aceite não implica um futuro optimista. Nimona merecia mais. Merece mais. O apoio é fútil se o interesse estiver somente no aspecto capitalista. Ninguém devia sair do armário apenas para ficar atrás dos cortinados. Esta história constata que não podemos esperar pela evolução do mundo para encontrar a nossa felicidade. Sem movimento, sem acção, sem expressão, tudo permanece estático. Não é ser aceite, é viver. Numa altura onde comentários exteriores se focam em reprimir a expressão, Nimona entrega uma resposta perfeita a todas as dúvidas preconceituosas disfarçadas de inocência.

– “Podes ser normal?”
– “Eu sou a Nimona.”

 

Devia ser suficiente. Uma recordação que, frente a tudo, está um nome, uma pessoa, um ser humano.

 

João Iria 

Artigo publicado originalmente no site Fio Condutor