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Dama de Paus: “Não tenhamos memória curta e lembremo-nos sempre do quanto custou a liberdade”

Numa noite em que subiram ao palco as melhores das melhores, a Dama de Paus levou a coroa para casa. A edição All Stars da Bolsa de Ouro, o concurso de transformismo idealizado por Roxy Vieira, que teve lugar na Casa do Artista no passado dia 16 de Março.

 

Fomos falar com a vencedora!

 

dezanove: O que significa vencer a edição All Stars, depois de um percurso de oito anos na arte do transformismo?

Dama de Paus: Vencer a versão All Stars da Bolsa de Ouro ao fim de quase oito anos de carreira significa a consolidação e validação da minha arte. Embora tenha ganho em 2018 a primeira edição da Bolsa de Ouro, sofro um pouco de síndrome do impostor. Esta segunda vitória veio dar-me a confiança no meu trabalho. Como o meu personagem drag não é mainstream ou comercial e a minha proposta drag foge ao tradicional, tenho-me questionado ao longo dos anos sobre se seria este o caminho a seguir. Em todo o caso tenho tentado manter-me fiel aos meus instintos e objectivos artísticos. Por isso esta vitória veio consolidar isso mesmo: à primeira até se pode ganhar por sorte, mas ganhar duas vezes já não.

 

A tua homenagem ao 25 de Abril impactou o público que estava no Teatro Armando Cortez da Casa do Artista. Quando e porquê decidiste cantar “Grândola Vila Morena”?

Assim que soube que iria competir na Bolsa de Ouro All Stars, e sabendo em que palco o ia fazer, decidi aproveitar os meios técnicos que me disponibilizavam, uma vez que enquanto drag, poucas são as oportunidades de actuar em palcos desta envergadura. A minha inclinaçao natural é de fazer arte com um fundo político e/ou social, e uma vez que fui criado nos valores de Abril e em total liberdade, o 25 de Abril surgiu naturalmente como a referência a seguir, bem como o tributo a todos os artistas que vieram antes de mim e que possibilitaram a minha existência enquanto performer. Grândola sempre foi para mim um hino, um grito de guerra, uma catarse de liberdade, e especialmente neste momento politico que atravessamos pareceu-me pertinente honrá-la.

 

 

No teu discurso durante a gala falaste da palavra Liberdade – Na tua opinião, achas que as pessoas em geral estão a perceber que a nossa Liberdade está em risco?

Penso que cada vez mais existe falta de empatia e compreensão mútua. As pessoas que estão de alguma maneira em posições de privilégio, sentem-se seguras e tendem a não se preocupar com as liberdades das minorias. A nossa liberdade está, de facto, em risco, lamento que nem toda a gente consiga ver isso. O clima de polarização política extrema as posições das pessoas faz com que a sociedade sinta que é uma guerra entre “nós e eles”. Sendo o nós e o eles o que quer que seja. Gostaria de destacar a velha história: primeiro vieram pelos judeus, eu não era judeu não me importei. Depois vieram pelos gays, eu não era gay não me importei. Agora vêm por mim, e não há ninguém mais que se possa importar por mim. A História é cíclica. Os ciganos são os novos judeus, os negros são os novos judeus, os imigrantes são os novos judeus, a comunidade LGBTQIA+ são os novos judeus. Não tenhamos memória curta e lembremo-nos sempre do quanto custou a liberdade.

Gostaria de destacar a velha história: primeiro vieram pelos judeus, eu não era judeu não me importei. Depois vieram pelos gays, eu não era gay não me importei. Agora vêm por mim, e não há ninguém mais que se possa importar por mim. A História é cíclica. Os ciganos são os novos judeus, os negros são os novos judeus, os imigrantes são os novos judeus, a comunidade LGBTQIA+ são os novos judeus.

 

No teu discurso também agradeceste aos teus pais pelo apoio que te deram e pelos valores que te transmitiram. Sentes-te uma pessoa privilegiada por esse apoio num país em que muitas vezes a mentalidade da sociedade fica atrás das leis progressistas?

Tenho efectivamente a sorte de ter uma família inteira a apoiar-me, sou um privilegiado. Para este concurso tive ajuda de toda a família (mãe, sobrinha, primas, tio). Sou de facto um caso raro nesse sentido. Sei bem que não ser normativo é ainda muito difícil na sociedade em que vivemos. Que mais mães, pais e tios e primas tenham o coração aberto para receber os seus. Que percebam que apenas com amor e apoio incondicional cada um de nós pode atingir o seu potencial máximo.

 

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Fazes disto a tua profissão? Fala-nos um pouco de ti e de onde te podemos ver actuar regularmente.

Por detrás da maquilhagem e dos figurinos, sou um homem de 35 anos, criado em Alenquer, feito homem nas Caldas da Rainha, onde vivi seis anos e estudei design gráfico. Regressei a Lisboa há 10 anos onde me fixei.

Infelizmente ainda não consigo viver exclusivamente da minha arte. Estou neste mundo há oito anos e só neste momento consigo não ter prejuízo, mas quem corre por gosto não cansa.

De momento tenho duas residências artísticas onde me apresento regularmente: o Drama Bar em Lisboa, onde apresento mensalmente as noites de queerquiz (noites de trivia sobre temáticas associadas à comunidade lgbtqia+), e o Hotel Upon Angels onde com a minha filha drag – Star Butterfly – apresentamos as noites de bingo e comédia de improviso. Além destas duas residências apresento-lhe pontualmente em vários bares e casas de espectáculos na grande Lisboa, como é o caso do Margem Sul Bar, que foi o patrocinador principal do prémio da Bolsa de Ouro All Stars. Agradeço também o patrocínio da loja Armário de Pandora que completou o valor do prémio final.

Podes também explicar-nos o teu nome artístico?

A Dama de Paus surgiu como uma necessidade de expressar a minha veia artística. Tinha-me mudado há relativamente pouco tempo para Lisboa e esta foi a forma mais imediata que encontrei para me poder exprimir artisticamente, uma vez que sempre estive ligado a várias artes. Quando surgiu a necessidade de criar um nome para a personagem, queria que fosse algo que não remetesse para uma possível mulher real. Queria que transmitisse de alguma maneira uma ideia de feminino, mas que não a materializasse numa pessoa que pudesse ser confundida com uma personalidade. Ou seja: a Dama é um veículo que utilizo para exprimir ideias, noções, conceitos ou sentimentos. Ela não tem uma personalidade própria, tem que se adaptar à mensagem ou história que pretendo contar. E já agora teria que ser um nome com um punch cómico, pois a comédia tem uma parte importante no meu trabalho. E genericamente, o que é uma drag queen? Uma dama algures com um pau escondido…

Que artistas te inspiram?

A minha inspiração vem de vários lugares, não necessariamente de artistas. Inspiro-me em pessoas do meu dia-a-dia, nas suas histórias e vivências, bem como em artistas conhecidos como Maria Rueff, Herman José, Ana Bola. Em personalidades conhecidas como concorrentes de reality shows, o Emplastro, o Senhor do Adeus. Em termos de artistas drag, a nível internacional é impossível não mencionar Sasha Velour ou Ícaro Kadoshi.  E a nível nacional, todas as que surgem no fundo da minha apresentação na Bolsa de Ouro. Na minha recolha histórica, consegui juntar perto de 250 nomes de artistas drag desde 1974. Todas elas me inspiram, especialmente as que vejo trabalhar de perto,  tanto as vedetas com 50 anos de carreira como as novas que começaram o ano passado. Toda a gente tem algo a ensinar, é preciso estar atento e receptivo.

 

Entrevista de Paulo Monteiro