Democracia de Género
O resultado das recentes eleições legislativas em Portugal, com crescimento exponencial da representação eleitoral da extrema-direita, só surpreendeu quem não esteve com atenção nos últimos 20 anos, e nos últimos dez, ou quem coloca tanta fé numa sociedade e economia de mercado que confunde o regime actual com uma verdadeira democracia.
Enquanto nascido em 1973, a meses da Revolução de Abril, e tendo crescido ao longo dos anos 80 e princípios dos 90 como um jovem homossexual (muito) reprimido e homofóbico, tenho uma consciência aumentada daquilo em que Portugal mudou – e muito – nos últimos 50 anos, mas também de quão recentes, limitadas e frágeis são algumas dessas transformações ocorridas no meu tempo de vida, no espaço de apenas um par de gerações.
Compreendo que seja muito difícil às novas gerações (em certo sentido, ainda bem) apreender realmente o que significa não ser preciso recuarmos nem 20 anos – 10 anos, se tanto, no caso das pessoas trans - para nos encontrarmos num país em que não encaixar na norma cis-heterossexista era crescer sem outra referência que não as da criminalização, da medicalização, da violência, da vergonha ou do insulto. É importante dizer que, mesmo neste contexto – por não querer ou por não poder – nem toda a gente se escondia – mas isso acarretava um custo, e este podia facilmente ser – e muitas vezes foi – letal.
A maioria ocultava-se, frequentemente atrás de famílias heterossexuais e vidas duplas, numa sociedade cuja matriz patriarcal e conservadora subsistia ao fim do fascismo. Um dos nossos problemas actuais é que essa matriz ideológica persiste, mesmo ao arrepio das transformações sociais que a tornaram anacrónica, e que os direitos que conquistámos não beneficiam todas as pessoas por igual, nem todas as pessoas que deveriam, e boa parte das vidas lgbti+ continuam ocultas e oprimidas.
Quando a homossexualidade foi descriminalizada em Portugal, em 1982, eu tinha 9 anos de idade. Já estava, então, extinto o Colectivo de Homossexuais Revolucionários (CHOR), uma das poucas tentativas precoces e efémeras de fazer movimento, então chamado de “homossexual”, ainda nem “gay e lésbico”. Não existiam associações, nem informação alternativa. Não havia modelos positivos visíveis, nem onde procurar. E viveríamos ainda o pânico moral da crise da SIDA.
Quando as identidades trans foram finalmente despatologizadas pela medicina em 2012, eu tinha já 39 anos, sinal da lentidão da mudança social, mas também do escalonamento de prioridades de um movimento que se concentrou primeiramente no desmantelar de legislação discriminatória e que depois iniciou a sua agenda legal com reivindicações maioritárias, como a do matrimónio igualitário, relegando para segundo plano, e para mais tarde, as reivindicações de sectores numericamente minoritários, mais invisibilizados e oprimidos, das nossas comunidades, como o das pessoas trans.
Não é possível subestimar o impacto estrutural da democratização do ensino, da afirmação social das mulheres, da escolaridade obrigatória, da proibição do trabalho infantil, do acesso à saúde com a criação do Serviço Nacional de Saúde, ou da entrada na Comunidade Económica – mais tarde União – Europeia, entre outros factores, na melhoria generalizada das condições de vida e oportunidades para amplas camadas da população. Tudo isso – e também, decisivamente, a Internet - contribuiu para permitir a muitas pessoas lgbt as condições materiais para que as suas vidas e relacionamentos passassem a ter existência social, mesmo antes das conquistas legais dos anos 90, 2000 e 2010.
Mas foi o movimento associativo – e político – construído a partir dos anos 90 que determinou o fim da invisibilidade, o lento reconhecimento institucional da nossa existência e uma agenda – grandemente limitada à vertente legislativa – de igualdade de direitos, que inscreveu os direitos das pessoas lgbti+ no plano dos Direitos Humanos e teve tradução legislativa nas décadas que se seguiram. A sua expressão social é outra conversa, de aprofundamento e consolidação mais lentos e para as quais, em Portugal, não houve ainda realmente o tempo necessário.
Foi o movimento associativo – e político – construído a partir dos anos 90 que determinou o fim da invisibilidade, o lento reconhecimento institucional da nossa existência e uma agenda – grandemente limitada à vertente legislativa – de igualdade de direitos, que inscreveu os direitos das pessoas lgbti+ no plano dos Direitos Humanos e teve tradução legislativa nas décadas que se seguiram.
O contra ciclo que vivemos hoje tem motivos adicionais e concorrentes, mesmo sem ter em conta o contexto internacional. O primeiro é que Abril, não só não se cumpriu, como muitas das conquistas que possibilitou têm vindo a ser sistematicamente desmanteladas. Basta olhar para a actual crise de acesso à Habitação, direito Constitucional, para constatar a calamidade social que significam a “auto-regulação” do mercado e as políticas que a favorecem. A mesma directiva europeia sobre o trabalho que proibiu a discriminação laboral em função da orientação sexual e identidade de género, foi a mesma por detrás do Código do Trabalho de Bagão Félix, o que mais desregulou os vínculos e as protecções laborais para a generalidade das pessoas, lgbti+ também, desde o 25 de Abril.
Na sua presente fase ultra – máxima concentração de lucro nas mãos de cada vez menos ricos e aprofundamento radical da destruição ambiental e do fosso entre ricos e pobres, sejam estes pessoas, países ou regiões do mundo – o capitalismo não poderia ser imposto sem fascismo (que é uma fase cíclica dos ciclos capitalistas) e sem o recurso à guerra imperialista permanente. A verdade é que Portugal, o do modelo dos baixos salários, nunca deixou de ser um país de profundas desigualdades e injustiças sociais, que não são insuficiência ou falha de regime, mas a matriz de um sistema de domínio e exploração como é o capitalismo.
A verdade é que Portugal, o do modelo dos baixos salários, nunca deixou de ser um país de profundas desigualdades e injustiças sociais, que não são insuficiência ou falha de regime, mas a matriz de um sistema de domínio e exploração como é o capitalismo.
Estas desigualdades estruturais bastam para perceber que os direitos conquistados beneficiaram apenas partes privilegiadas das nossas comunidades. Existem teoricamente para toda a gente, mas só uma parte tem condições para lhes aceder. Podemos, aliás, colocá-los ao lado do direito à saúde, à educação, à protecção social, à justiça, entre outros: não existe democracia quando a pobreza ou um contexto social e/ou culturalmente precário determinam a impossibilidade de acesso real à maioria das pessoas. Como hoje se torna mais evidente, não basta inscrever os direitos na lei para que estes se cumpram, nem para mudar mentalidades e ganhar maiorias sociais, nem para que estes não voltem a ser questionados. Enquanto constituírem um privilégio de quem pode, estarão sempre ameaçados.
Não existe democracia quando a pobreza ou um contexto social e/ou culturalmente precário determinam a impossibilidade de acesso real à maioria das pessoas. [...] Não basta inscrever os direitos na lei para que estes se cumpram, nem para mudar mentalidades e ganhar maiorias sociais, nem para que estes não voltem a ser questionados. Enquanto constituírem um privilégio de quem pode, estarão sempre ameaçados.
Apesar de pertencer a uma das gerações que lutou por estes direitos, não pertenço ao clube do “não é assim que se faz”, vício geracional de quem levou reivindicações a bom porto e hoje olha com desconfiança para as novas causas e para as formas e expressão e de luta da juventude. Não somos nós que temos as respostas de hoje ou para amanhã. Mas temos um dever de memória histórica, em particular sobre alguns aspectos que não mudaram.
Temos um dever de memória histórica, em particular sobre alguns aspectos que não mudaram.
O primeiro é que os direitos lgbti+ são absolutamente indissociáveis dos direitos das mulheres, dos direitos sexuais e reprodutivos – não teríamos ganho o matrimónio igualitário sem a conquista anterior da despenalização do aborto, e não é um acaso nem uma particularidade do processo político português. É porque tanto a homofobia como a transfobia assentam no machismo e na noção restritiva do género e da expressão de género que este transporta. Estes direitos avançam, ou recuam, juntos. Não é possível compreender a lgbtfobia sem noções de feminismo. Quando hoje vemos as pessoas jovens sem autonomia para deixar a casa dos pais, as funções sociais do Estado crescentemente devolvidas “às famílias” (quer dizer, às mulheres), pessoas cujo emprego e salário não permitem sair da pobreza, é a própria condição material para a existência e aceitação social de vidas lgbti+ que é posta em causa.
Os direitos lgbti+ são absolutamente indissociáveis dos direitos das mulheres, dos direitos sexuais e reprodutivos – não teríamos ganho o matrimónio igualitário sem a conquista anterior da despenalização do aborto. [...] tanto a homofobia como a transfobia assentam no machismo e na noção restritiva do género e da expressão de género que este transporta.
O mesmo se pode dizer dos direitos das pessoas trans, das pessoas migrantes, refugiadas e comunidades racializadas, das trabalhadoras do sexo, das pessoas com deficiências, de todas as outras pessoas excluídas social e economicamente por algum motivo, normalmente um caldo de motivos. Está tudo ligado, e por isso se englobam diferentes realidades de opressão na noção de Direitos Humanos. Eles avançam, ou recuam, juntos. Há pessoas lgbti+ em todas as outras comunidades que lutam por direitos. Quem acha que pode manter os seus direitos e privilégios enquanto outras pessoas os perdem ou não chegam a ganhar, vive um engano. Podemos ir mais longe: quem acredita que o que hoje se vive em Gaza ou na Ucrânia não tem relação com os nossos direitos em Portugal, que deitar para o caixote do lixo (e não apenas violá-lo, como sempre se fez) todo o Direito Internacional e de Direitos Humanos posterior à Segunda Guerra não tem um impacto global sobre todos os direitos humanos, vive uma segunda ilusão, a de que havendo vidas que não têm qualquer valor, as demais vidas estão protegidas de perderem o valor que lhes é reconhecido.
Quem acha que pode manter os seus direitos e privilégios enquanto outras pessoas os perdem ou não chegam a ganhar, vive um engano.
Terceira falácia, quem assim pensa não faz a mínima ideia do que são as tácticas e a natureza da violência política que caracterizam a extrema-direita. No início dos anos 2000, fiquei chocado ao verificar como a extrema-direita francesa conseguia arrebanhar selectivamente alguns dos seus alvos contra outros dos seus alvos favoritos. Pessoas migrantes e de minorias étnicas manifestavam-se alegremente ao lado de fascistas contra o matrimónio igualitário. Pessoas lgbt eram facilmente mobilizadas pelos mesmos fascistas para manifestações racistas ou contra a imigração. Poderia dar outros exemplos semelhantes daquilo que é parte da explicação do sucesso da extrema-direita: alvos compartimentados, mobilizar, à vez, uns grupos contra outros, dividir para reinar.
Quando a extrema-direita portuguesa elege os poucos avanços conseguidos pelas pessoas trans – que sempre estiveram na linha da frente das conquistas das pessoas homossexuais – como um dos seus alvos fáceis, está terrivelmente enganado quem acredita que os demais direitos estarão a salvo se o movimento trans perder a sua luta. Para a extrema-direita, todos os direitos são alvo a abater, mas é mais fácil seleccioná-los à vez, começando pelas comunidades mais isoladas e minoritárias, com menos defesas e que mal começaram a ver reconhecidos direitos mínimos.
Face a esta estratégia divisiva, a resposta está na união, e não apenas no movimento lgbti+. A interseccionalidade entre causas, de que hoje tanto se fala, é exactamente sobre relacionar as diferentes discriminações e valorizar as alianças entre movimentos, mas também de contrariar a extrema-direita na sua estratégia de excluir comunidades específicas do que considera ser “o corpo nacional”. Mesmo considerando as pessoas lgbti+ de todas as condições económicas, géneros, origens sociais, origens étnicas e nacionais, situações migratórias e outras, em toda a sua diversidade de realidades e contextos, isto nunca foi apenas sobre nós, e é por isso que uma mera agenda de igualdade de direitos sempre foi limitada. Reivindicar direitos para qualquer comunidade é melhorar a sociedade para todas as comunidades e pessoas, e a democracia em si – e conquistar direitos para todas as pessoas, é conquistar direitos também para as pessoas lgbti+. Mas isto não se compadece com discursos exclusivamente centrados nos “nossos” direitos, nas “nossas” identidades, que acabam por reforçar a lógica do “nós / eles” que a extrema-direita procura cavalgar. Precisamos, no mínimo, de diversificar linguagens e estratégias, e não há nenhuma contradição insanável entre discursos políticos mais avançados e os mais institucionais ou recuados, que normalmente são de aceitação mais fácil. Devem coexistir, como sempre aconteceu.
Face a esta estratégia divisiva, a resposta está na união, e não apenas no movimento lgbti+.
O movimento lgbti+ está hoje perante um desafio evidente de retomar lógicas de articulação – ou, pelo menos, de debate – nacionais, que eram mais fáceis de praticar quando éramos meia dúzia de pessoas e colectivos isolados e sem movimentos aliados, mas que são o que permite consensualizar pelo menos algumas estratégias comuns de resposta às narrativas e mentiras da extrema-direita – como contrariar, por exemplo, a narrativa da suposta “ideologia de género”.
Outro desafio é voltar à pedagogia e à disputa de uma maioria social favorável. É totalmente compreensível que muitas pessoas lgbti+ queiram hoje viver a sua vida sem pedir licença nem ter de se explicar, e que comunidades às quais foram negadas até as palavras para se auto-definirem se desdobrem em novas definições, algumas transitórias, que vão acrescentando letrinhas à eternamente mutante sigla lgbti++++... Mas não estamos sós nesta sociedade, e ela nunca nos foi favorável. Não podemos falar só para nós, nem só de nós, ou de forma que só nós entendemos, sob pena de operarmos o nosso próprio fechamento e isolamento. Precisamos de comunicar com linguagens e argumentos que qualquer pessoa entenda. E precisamos de sair do nosso movimento e reforçar as alianças possíveis.
Mas não estamos sós nesta sociedade, e ela nunca nos foi favorável. Não podemos falar só para nós, nem só de nós, ou de forma que só nós entendemos, sob pena de operarmos o nosso próprio fechamento e isolamento. Precisamos de comunicar com linguagens e argumentos que qualquer pessoa entenda. E precisamos de sair do nosso movimento e reforçar as alianças possíveis.
Mudar a realidade social implica explicar, explicar, explicar. Explicar conceitos, desmontar preconceitos com argumentos, demonstrar a existência das discriminações e dos seus efeitos, debater com pessoas ignorantes que nos deixam desconfortáveis, mas que não são nossas adversárias ideológicas. Não se trata de regressarmos a narrativas defensivas, nem de pedirmos desculpa por existirmos, nem de invisibilizar partes das nossas comunidades, nem sequer de prescindirmos da linguagem que escolhemos para nós, mas sim de nos fazermos entender, de forma táctica e dependente do contexto, acessível a qualquer pessoa. Temos melhores condições para o fazer hoje do que existiam há 20 anos, quando não existia ainda um movimento lgbt nacional e tão diverso para fazer esse debate. Por outro lado, quem achou que era só obter mudança legais e “já está”, tem agora a evidência de que é mais necessário do que nunca construir os movimentos lgbti+ e que estes serão sempre necessários enquanto a discriminação social permanecer a realidade dominante, independentemente do quadro legal.
Mudar a realidade social implica explicar, explicar, explicar. Explicar conceitos, desmontar preconceitos com argumentos, demonstrar a existência das discriminações e dos seus efeitos, debater com pessoas ignorantes que nos deixam desconfortáveis, mas que não são nossas adversárias ideológicas. [...] Os movimentos lgbti+ serão sempre necessários enquanto a discriminação social permanecer a realidade dominante.
Sérgio Vitorino, co-fundador das Marchas do Orgulho LGBTI+ de Lisboa e do Porto