“É simples.... just call me by my name!”
Vince, 20 anos, FTM, residente em Cascais, aceitou partilhar connosco alguns DO's and DONT's (coisas que SIM devemos dizer e coisas que NÃO devemos dizer) que se efectivam cruciais quando interagimos com pessoas trans.
Dando voz à sua voz, podemos aprender e finalmente perceber que pessoas trans são, acima de tudo, pessoas, pelo que e, dispensando mais comentários, já satura tanta ignorância social. Esta entrevista surgiu da necessidade suprema de mostrar ao mundo que ser trans é uma condição adjacente ao ser humano. Não é uma escolha, não é uma fase e muito menos uma moda. Assim, ganhemos todos com a partilha destes ensinamentos que podem fazer a diferença na vida destas pessoas que, acima de tudo, têm tanto direito a existir quanto eu ou tu, caro leitor!
Vince: Maioritariamente, eu falo por mim, falo do que eu vejo, não vou tentar falar pela comunidade trans toda, lá está, é impossível eu representar a comunidade toda.
Bem... do’s and dont’s....não nos perguntem, o dead name....não vale a pena....para quê???
dezanove: O que é que é o deadname?
Vince: O deadname é a designação dada ao nome que nos foi atribuído à nascença, portanto...não fui eu que o escolhi e como todas as outras pessoas trans, também não foram elas que o escolheram. E chamamos de deadname, porque é um nome morto, é um nome que já não usamos e com o qual não nos identificamos e que não nos representa...mas muita gente pensa que é importantíssimo saberem o nosso deadname. E muitas vezes é a primeira pergunta que nos fazem é qual é que é o nosso nome antigo?! Nunca percebi muito bem o que é que as pessoas querem ao saber isto!!! Ou o que é que ganham ao saber qual o nome que eu já não uso, que não está nos meus documentos legais, se pesquisares, para o Governo, esse nome (deadname) não existe, portanto para mim, para nós também não existe! Portanto don’t, nunca o façam... perguntar o deadname de alguém!
Outro don’t, o sexo biológico.....ah... nasceste menina.... nasceste menino.......Qual é o teu sexo biológico? É outra pergunta que muitas pessoas também fazem! Bem... essa pergunta não vale a pena ser feita, a não ser que:
- ou vais para a cama comigo.. (risos)… eu provavelmente terei que te dizer que ... pronto...( risos) ou...
- és um médico... bem já me aconteceram situações caricatas, nomeadamente eu ter que fazer um ecocardiograma (exame ao coração) e o médico por sua livre e espontânea vontade foi descendo no abdómen e disse que eu tinha ali qualquer coisa a mais.... e eu respondi.. Sim é o meu útero!
Por isso, se não fores nem médico, nem alguém que vai para a cama comigo, acho que esta pergunta não te interessa para nada... e em regra geral necessitas de ter um nível de intimidade muito grande connosco assim como o meu consentimento, para fazeres perguntas deste género. Lá está... é como o deadname... o que é que vais aprender com isso? Para que é que precisas de saber com qual sexo eu nasci? Até porque a nível sexual, uma pessoa que está a tomar testosterona tem muitas poucas parecenças com o corpo do sexo anterior...para além dos genitais, que é óbvio, as parecenças acabam aí! Os meus níveis de testosterona são diferentes, a minha densidade óssea é diferente, o meu aspeto é diferente...portanto já estou muito longe de ter nascido com o sexo biológico atribuído à nascença…quase todas as minhas características sexuais afetas ao feminino já desapareceram todas! Outra... O teu corpo será sempre de uma mulher!... bem se fores a ver a nível médico, nem por isso, a nível estrutural também nem por isso (risos)!
Vânia Cavacas Pires e Vince
Já que tocaste no assunto do médico que, por auto recriação, quis ver se tinhas útero... (risos), como te sentes quando te fazem de “guinea pig” (alvo de experimentação ou cobaia)? Acentua-te a disforia de género?
Não...nesse caso, não. Eu até me sinto um privilegiado, pois o tratamento médico que eu vejo muitas pessoas trans a receber é de arrepiar e elas sentem-se mesmo “guinea pigs” e muito desrespeitadas! Eu falo como privilegiado pois sempre me respeitaram, sempre respeitaram o nome e os pronomes corretos e nunca me deram missgender (género errado).
Bem.... agora uma pergunta delicada. Se tiveres que ir a um ginecologista, como isso te faz sentir?
Uma pergunta muito interessante... porque eu já fui ao ginecologista, depois da transição, ou melhor, no seguimento da transição...Mesmo antes da transição eu fugia “a sete pés” desta especialidade...aquilo não é simpático...principalmente aquele papa nicolau...não é agradável para ninguém depois com a disforia...isto acentua-me a minha disforia e muito. Sim, já tive que ir ao ginecologista como homem, tinha a ver com a transição, foi em Coimbra (URGUS), por isso foi um bocadinho diferente...com um ambiente mais inclusivo e tudo mais...mas senti-me tão tão disfórico...Convenhamos que isto é saúde e temos que ter os cuidados necessários e se tiver que ir sem ser na transição, olha...irei apesar de me acentuar a disforia.
Podes elaborar um pouco sobre esta sensação de disforia de que falas nestas consultas...
Senti nojo...de mim próprio..., atenção que isto foi a minha experiência e não quero com isto dizer que todas as pessoas trans sentem isto, mas eu senti nojo e vergonha de mim próprio, pois senti-me exposto ao tocarem num sítio que é o expoente máximo da minha disforia, os meus genitais. No dia-a-dia é algo que eu nem sequer me lembro..., mas naquele momento...foi mau.
E que conselhos dás às pessoas trans que tenham que consultar esta especialidade? Como é que podem encarar isto na vertente psicológica, visto que da física é o que é!
Têm que encarar como uma necessidade inerente ao ser humano e não como estivessem a mexer no órgão sexual feminino, neste caso, mas sim num órgão do teu corpo masculino. Porque és um homem! Ou ao contrário se fores uma mulher trans. Eu penso que irá sempre haver uma parte de disforia lá! Não estou a dizer que isto seja transversal a toda a comunidade, mas têm que encarar como saúde e não se pode descurar ou ignorar a saúde por causa da disforia. O melhor é perguntar a outras pessoas trans e procurarem um médico inclusivo e ciente das questões trans para que se tenha um bom atendimento psicológico na consulta e que te faça sentir mais à vontade.
E podes referir mais dont’s?
“Já fizeste as cirurgias?” Crasso, erro crasso! As pessoas gostam muito de perguntar sobre isso! Atenção, há uma diferença muito grande entre pessoal trans e cis a fazer esta pergunta. O intuito dos trans é de follow-up, de guidance, agora o dos cis...é pura curiosidade, é para esburacar a minha vida. Do género, mas já tens “pila”?, o que eu acho desapropriado pois eu nunca pergunto a ninguém o que é que tem debaixo das calças, logo isto de perguntar se já fizemos cirurgias é bastante invasivo e que tu nunca farias a outra pessoa, por exemplo, eu chegar a uma pessoa na rua e dizer: “Ai és cis, então como vai essa pila?!!!” (risos). Como vês esta pergunta não se faz a ninguém, porque hão-de fazer connosco?
No meu caso não, ainda não fiz nenhuma. Estou em lista de espera. Mas a maior parte dos homens trans que ainda não fizeram a mastectomia usa binder, eu não uso, pois as hormonas retiraram-me bastante tecido mamário, então deixei de usar binder por causa das minhas costas, aquilo destrói-te as costas....
Outra pergunta desnecessária é “quantas cirurgias vais fazer? As duas?” – Como se o processo de transição se resumisse a apenas duas cirurgias...é descabido. Em primeiro lugar no nosso caso, são preciso pelo menos umas dez e depois cada pessoa é que define o seu nível de disforia e se quer submeter-se a qualquer tipo de cirurgia. Ser trans não passa por cirurgias...mas as pessoas outsiders, são tão absortas nelas mesmas que por verem 2 locais de leitura feminina (mamas e genitais) resumem as cirurgias a 2...Enfim…não há uma “chapa 5”!
Felizmente tem havido alguma visibilidade na TV com alguns programas em canal nacional a emitirem entrevistas televisivas sobre pessoas trans. E se tu fosses entrevistado...o que dirias?
A visibilidade está a crescer, mas nem toda a visibilidade é boa visibilidade! Eu acho excelente as pessoas quererem debater estas questões, no entanto fico com a sensação que as perguntas nestes “programas da tarde” giram em torno se nós existimos ou não! Eu sinto que “eles” (programas da tarde) gostam muito de nos apresentar como se fôssemos um bicho do circo, como se fôssemos uma raridade. E eu pergunto-me com que intuito estas perguntas são feitas? Se por ignorância ou se para acentuar ainda mais o estereótipo e estigma que temos e que dá audiências, não é?! Às vezes penso se a mensagem que querem passar vai para além da filantropia, pois a audiência destes programas é mais madura e na sua maioria terá dificuldades em perceber o que é ser trans e a complexidade inerente e não podemos ser descritos num par de linhas, penso eu!
Às vezes penso se a mensagem que querem passar vai para além da filantropia, pois a audiência destes programas é mais madura e na sua maioria terá dificuldades em perceber o que é ser trans e a complexidade inerente e não podemos ser descritos num par de linhas, penso eu!
Às vezes é bastante acentuado nestes programas que as pessoas trans são fora da caixa, que têm peculiaridades, que queremos provocar e que somos excêntricos. Em vez de passar a mensagem que, à semelhança das pessoas cis, as pessoas trans têm igualmente uma multitude de particularidades e personalidades diferentes! Portanto, tens pessoas que gostam de X, pessoas que gostam de Y e outras ainda que gostam de Z.
Eu contra mim falo, eu acho que sou um desses excêntricos (risos), bem se eu fosse a um programa desses, olha, lá ia eu passar o estereótipo de: pronto, mais um bacano trans que tem piercings até ao pescoço, que sou alternativo e que só quero é provocar! Aliás, já tenho ouvido que faço as minhas tattoos para provocar e ainda por cima sou trans, como se a Sociedade me permitisse desviar um pouco do “normal” ao tatuar-me, mas ser trans, ainda por cima, é que não!
Somos pessoas, somos seres humanos, temos os mesmos direitos, temos emoções e gostos diferenciados e seguimos a mesma conduta social das pessoas cis. É simples, as normas sociais de uns são para todos, não é?
Agora vou fazer algumas perguntas e /ou observações e gostaria que comentasses, por favor!
Quando é que decidiste ser trans?
Bem...se não me engano, foi no dia 30 de Fevereiro de 2003...e senti-me inspirado e decidi ser trans! Ok (risos). NUNCA decidi ser trans, não se decide ser trans! A única decisão que as pessoas trans fazem é decidir ou não fazer a transição, porque o ser trans nasce connosco. Nós não decidimos ser trans, é como decidir ser-se cis, olha, quando é que decidiste ser cis???! Não soa bem, não é?! Mas sim, a nossa decisão recai sobre se transitamos no sexo ou não...eu ainda pensei muitas vezes se o faria, mas depois conclui que ou fazia a transição ou… (gesto de morte por suicídio) e foi a melhor decisão que tomei, pois as pessoas gostam muito de dizer que nunca nos vamos sentir a 100% no nosso corpo, o que é uma mentira pegada, pois eu nunca fui tão feliz na minha vida. Posso até acrescentar que as minhas infelicidades vêm de não conseguir pagar a conta da luz pois a electricidade é muito cara (risos).
Mas eras tão bonita antes, porque é que mudaste?!
Mas estás a ver-me aqui e agora, certo? Este sou eu, agora sim, eu sou lindo. Nunca fui linda, quanto muito era lindo! Nunca se deve dizer este tipo de comentário a ninguém. Nós odiávamos o que víamos ao espelho, eu falo por mim, odiava o antes, porque era um retrato de uma identidade que não era a minha. As pessoas viam-me como alguém que eu não era e faziam “assumptions” [suposições] baseadas nesse retrato que viam, completamente erradas. E mais que tudo eu nunca me senti linda e acho que este tipo de comentários é para nos fazer sentir “guilt trip” – fazerem-nos sentir culpa em termos feito a transição não olhando a quem magoámos e só termos pensado em nós! Às vezes até nos dizem que ficamos mais feios, mas eu digo, nunca antes fomos tão lindos e lindas, pois sermos fiéis a nós mesmos realça a nossa verdadeira beleza!
Não te vais arrepender de teres feito a transição? Não foi uma fase?
F%ck no, F%ck no way!!! Nunca na vida...e se for uma fase, é uma fase que dura a vida toda. O que tu podes ter é uma fase de curiosidade e uma fase de incerteza, e eu acho muito bem que tendo essas incertezas que falem com o médico, com os amigos e com os pais e explorar a tua identidade de género. Tu tens a liberdade ou deverias ter a liberdade de fazer isso. Usares um vestido se te sentes bem ou outras situações que te façam experimentar a tua verdadeira expressão, para te ajudar nas incertezas! E te asseguro que não é uma fase!
Se gostas de raparigas podias ter ficado lésbica!
Orientação sexual e identidade de género não são a mesma coisa e de quem eu gosto não tem nada a ver como eu me sinto, ou quem eu sou. Isso parece uma pescadinha de rabo na boca, porque o discurso que hoje em dia se aplica aos trans, outrora aplicava-se às pessoas LGB. Hoje em dia ser gay é normalíssimo, mas ser trans ainda tem tanta discriminação e preconceito! Ainda se ouve muito que ser trans é errado, é patológico, que é doença... enfim... o que antes dizia-se sobre os gays e sobre as lésbicas, agora é a nossa luta, a luta do T!
Para terminar, eu sou uma mulher cisgénero e heterossexual. Que legitimidade tenho eu de estar a falar e a estudar assuntos transgénero?
A primeira resposta que tenho para pessoas cis é que não têm nenhuma, de facto! Mas isso é mais um ódio emprestado e reflectido pelo ódio que nós recebemos de vocês! Mas vindo de uma fonte de sinceridade, eu acho que nós, as pessoas trans, precisamos de mais allies e de mais pessoas que normalizem-nos e nos banalizem, que nos ajudem e queiram dar a voz por nós! Que queiram fazer ver ao mundo o nosso ponto de vista sincero, sem o powering balance de “programas da tarde” e sem condescendência. O vosso trabalho é bom pois conseguem chegar a mais pessoas pelo simples facto de terem o privilégio de serem cis. As vossas vozes chegam a mais sítios do que as nossas e infelizmente têm mais poder. Muitas das vezes é preciso os cis virem dizer o que nós já andamos a reivindicar há anos para que se faça luz, justiça e cumprimento dos nossos direitos que são iguais aos vossos, o que é engraçado! Os cis têm que nos validar para que o estigma de excêntricos e de bichos exóticos desapareça, é triste! Vocês allies são muito bem-vindos!
Vânia Cavacas Pires,
Ally por vocação, defensora por missão
Contactos úteis para as pessoas LGBTI+ em Portugal:
AMPLOS - Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género
APAV - Associação Portuguese de Apoio à Vítima - Rede Nacional de Gabinetes
API - Acção Pela Identidade
API – Associação Plano i (Matosinhos)
Casa Qui - Associação de solidariedade social pela inclusão e bem-estar da população LGBT
ILGA Portugal - Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual e Transgénero
Linha LGBT - Linha Telefónica de Apoio e Informação LGBT
Opus Diversidades – Defesa e promoção dos Direitos Humanos da comunidade LGBTI+
Panteras Rosa - Frente de Combate à LesBiGayTransfobia
rede ex aequo - Associação de jovens LGBTI e apoiantes: geral@rea.pt
ReNascer – Serviço de Saúde Mental
SOS Voz Amiga - um serviço de ajuda pontual em situações agudas de sofrimento causadas pela Solidão, Ansiedade, Depressão e Risco de Suicídio: 21 354 45 45, 91 280 26 69 ou 96 352 46 60. (entre as 16 e as 24h00)