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Nem na mata se encontram histórias assim

José Carlos Tavares: "Foi uma altura de muito trabalho de muita emoção e hoje olhando para trás, faz-me sentir bem comigo próprio e com todos por quem lutamos"

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O GTH (Grupo de Trabalho Homossexual) nasceu em 1991 no seio do PSR (Partido Social Revolucionário) e assumia-se como um "grupo lésbico, gay, bissexual e transgender de esquerda, de orientações sexuais e identidades de género diversas que pensava e agia contra o machismo, a homofobia e a discriminação das minorias sexuais". O GTH cessou em 2003, sendo até esse ano um dos mais activos e percursores grupos activistas de defesa das pessoas LGBTI+ em Portugal.

No ano em que se comemoram os 50 Anos da Revolução do 25 de Abril e os 25 Anos da Marcha do Orgulho LGBTI+ de Lisboa fomos recuperar uma entrevista efectuada há uns anos (mais precisamente em 2012, mas só publicada agora) a José Carlos Tavares, um dos rostos do GTH, um activista histórico que reencontramos, com orgulho, no Bloco Vintage da última Marcha do Orgulho LGBTI+ de Lisboa
 

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dezanove: Podes indicar-nos a data precisa da fundação do GTH e o que te levou a criá-lo?
José Carlos Tavares: Essa pergunta tem como resposta esta notícia da apresentação pública do GTH /PSR e seu manifesto:

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Tive a ideia da formação de um grupo de intervenção política por ter sido expulso de casa depois de ter assumido a minha orientação sexual, da igreja adventista do sétimo dia, por a minha irmã mais velha ter retirado o filho dos meus braços por ser gay, por ter tido um primo meu que morrera de sida e que na altura esteve algumas semanas num gavetão frigorífico do H. Santa Maria com um papel colado com a palavra sida e um ponto de interrogação e os/as médicos/as na altura não o queriam autopsiar por medo e ignorância. Por ver muitos/as amigos/as a serem discriminados também. Esta minha vontade de intervir deu-se em 1990 e foi fortalecida pelos contactos que estableci nos acampamentos de jovens revolucionários e pela abertura política e social do PSR onde militei. 

A data foi 29 de Maio de 1992.

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Quem fazia parte do núcleo fundador? Que funções exercias?
 
Porque mencionas a Igreja Adventista como um dos factores que te levaram a criar o GTH? 
Menciono a Igreja Adventista do Sétimo Dia, [igreja] onde fui educado desde pequeno e quando me assumi fui levado a um médico da associação dos adventistas que me aconselhou ir correr para desenvolver a minha virilidade e enquanto isso a igreja jejuava e fazia orações pela minha cura e me pediam também que o fizesse. Tive um amigo que sucumbiu a estas tentativas reorientadoras da sua orientação sexual. O desconforto que ele sentia ao ser gay era fruto de toda uma educação assente na religião, porque os Adventistas ainda seguem o velho testamento e as palavras de Paulo. Como eu não alinhei nas estratégias de cura pela oração e jejum recebi uma carta a dizer que deixava de constar como membro desta organização e que quem era riscado do livro da igreja, era riscado do livro de Deus! Só cito porque este processo foi doloroso e aumentou também a minha indignação contra a homofobia. 
 
...enquanto isso a igreja jejuava e fazia orações pela minha cura e me pediam também que o fizesse. Tive um amigo que sucumbiu a estas tentativas reorientadoras da sua orientação sexual. O desconforto que ele sentia ao ser gay era fruto de toda uma educação assente na religião.
 
Como foi criar o GTH nessa altura em que menos leis estavam do lado dos cidadãos LGBT do que aquelas que existem actualmente?
Para além das dificuldades que todos passamos, refiro outras que se passaram depois de ter feito a minha assunção pública.
Quando apanhava o comboio na linha de Sintra ou de Cascais em hora de ponta muitas foram as vezes que ao sentar-me num lugar vago se ao lado ou à frente havia alguém que me reconhecia ou fazia muito má cara ou levantava-se com ar incomodado.
Outro acontecimento foi numa saída à noite com o meu companheiro e estávamos na Rua do Bar Incógnito , um pouco perdidos à procura de um bar para ver se encontrava uns amigos que talvez me pudessem arranjar trabalho, pois a agência de publicidade onde trabalhei tinha declarado falência. Passaram por nós dois homens e uma mulher e eu dirigi-me a estes e a esta perguntando se sabiam onde ficava a rua tal. Qual não foi o meu espanto pela reacção destes que se identificaram prontamente como polícias e começaram logo a chamar-me paneleiro e outros nomes e a baterem-me. Gritei "fogo!" e outras coisas para ver se alguém aparecia mas nada, tentei fugir mas escorreguei na calçada e aí caído foi quando levei mais pontapés! Assim que consegui fugir refugio-me no Incógnito e conto o que se passou e as pessoas que estavam neste bar saíram para fazer uma batida a ver se encontravam esses indivíduos, enquanto que o senhor que estava à porta chamou um táxi que acabaria por me levar a casa. Até hoje estou muito grato às pessoas que naquela época frequentavam este bar assim como estou grato ao Incógnito.
Quando trabalhei em publicidade tive uma alergia alimentar que me provou urticária e estava cheio de borbulhas, fui chamado pela pessoa encarregue do pessoal para me transmitir que uma das pessoas que fazia parte da entidade patronal me pedia que fosse para casa e que só regressasse depois de fazer o teste da sida, porque havia muitas mulheres ali e não queria que ninguém corresse riscos de saúde.
Foi uma grande humilhação ter que voltar e ter que mostrar o meu teste negativo da sida.
O tempo não foi um tempo fácil porque os grupos da direita e da igreja conservadora tentavam colar a homossexualidade à sida. Por esta ter sido mais notória na comunidade Gay de S. Francisco logo começaram a dizer que era a doença dos três H: Putas [Hookers], Haitianos, Homossexuais.
 
Partilhas do José Carlos Tavares:

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José Carlos Tavares à direita, ao centro João que fazia parte da direcção da Escola de Ourique e o William Aguiar activista LGBT do PT brasileiro

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Esta foi uma campanha que contestamos e que acabou por ser retirada.

 

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Colocavamos faixas nas ruas com palavras de ordem dirigidas aos gays e lésbicas e participavamos das manifestações. Trouxemos a questão, na altura só LGB, para a política e para a política de rua, só ao fim de 8 anos é que se começou a falar das identidades trans.

 

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Eu e o Amilcar Soares do Grupo Positivo com uma das nossas faixas por trás

 

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Consegues destacar alguns momentos e conquistas do GTH?
A acção contra a Porto Editora pela significação que dava às palavras homossexual, lésbica, catinga entre outras.

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Fomos todos para o Porto onde nos juntamos com camaradas de lá para nos concentrarmos em frente da Porto Editora por causa das significações das palavras: Lésbica, homossexual e catinga entre outras e que acabaram por ser retiradas dos dicionários nas edições seguintes.

A ida a escolas falar muitas das vezes na primeira pessoa para criar um eixo comum com muitos jovens que poderiam muito bem estar a passar familiarmente e socialmente pelo que eu tinha passado e para que estes também não se sentissem como seres únicos e isolados, note-se que nesta a altura não havia internet e a interioridade era bem maior e mais pesada do que hoje.

As nossas respostas a rebater artigos homofóbicos publicados na imprensa escrita.
O estar nas bancas do PSR com os materiais que o GTH  ia fazendo como uma t-shirt que foi um êxito porque tinha a imagem do anterior papa de saltos altos a crucificar um homem que tinha usado preservativo, imagem esta que nos fora cedida por Luíz Mott e pelo Grupo Gay da Baía. 
Foi uma altura de muito trabalho de muita emoção e hoje olhando para trás, faz-me sentir bem comigo próprio e com tod@s por quem lutamos. 
A TSF fez um compacto onde passou grande parte da minha vivência, onde me expus completamente e que serviu também como divulgação da apresentação pública do GTH e seu Manifesto. Este compacto passou durante uma manhã inteira. Foi uma altura de muito trabalho de muitas emoções e hoje olhando para trás, faz-me sentir bem comigo próprio e com todos por quem lutamos.

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O GTH extinguiu-se em 2003. Como vês o aparecimento e desenvolvimento do trabalho dos vários colectivos e associações desde então criados?
Todos os colectivos e associações hoje presentes no activismo são importantes! Todos têm desenvolvido trabalho em várias frentes em prol da comunidade LGBT. Só tenho pena que muito deste trabalho seja feito para dentro dos movimentos, descurando-se muito o trabalho e a intervenção de rua que pode ajudar e incentivar muita gente a sair do anonimato.Também sinto que faz muita falta levar o activismo para fora dos grandes centros  urbanos como Lisboa, Porto ou Coimbra.
Quantos filmes, documentários e pequenas discussões sobre os mesmos e quantas trocas de experiências podiam ser realizadas em muitas cidades e vilas do Portugal interior. Sempre que me desloquei para sítios onde se sente a solidão que a interioridade provoca, reparei que as pessoas em geral têm uma necessidade enorme de ser ouvidos e não tanto de ouvir ainda mais se nota nas pessoas LGBT, estas últimas quase fazem uma festa interior e os olhos saltam-lhes de alegria quando percebem que estão ali pessoas como elas.
É preciso que todas as associações e colectivos se sensibilizem e lutem contra a despatologização das pessoas trans.
Penso que é urgente a interacção/comunicação entre todas as associações e colectivos independente das divergências ideológicas, porque o activismo é feito para as pessoas e estas merecem-nos todo o respeito.
Penso que é urgente a interacção/comunicação entre todas as associações e colectivos independente das divergências ideológicas, porque o activismo é feito para as pessoas e estas merecem-nos todo o respeito.
 
 
O GTH ou os seus membros foram alguma vez alvo de pressões?
Para além das que referi sobre mim, houve o caso de um funcionário da Carris com um psiquiatra que dizia que só o podia acompanhar se este tratasse primeiro da sua homossexualidade.
 
Faz falta mais lobby gay na política em Portugal?
Nada tenho contra grupos de pressão. As pessoas LGBT não são exclusivas da esquerda, da direita ou do centro. Há pessoas LGBT a integrarem as diversas forças político-partidárias e estas pessoas que desempenham este trabalho político, têm a responsabilidade de promover o debate sobre as questões LGBT  dentro das suas organizações políticas. Sempre defendi este assunto e fico surpreso por se defender o casamento deixando de lado as questões da parentalidade assim como as das doações de sangue. E isto acontece porque o trabalho dentro dos partidos políticos não se faz ou fica apenas como trabalho das juventudes partidárias.
O casamento foi sem dúvida uma grande conquista quer gostemos deste instituto ou não, mas se repararmos, por exemplo, em quase todos os países que aprovaram o casamento também aprovaram muitos aspectos da parentalidade como a adopção e a Procriação Medicamente Assistida (PMA) E quase todos os partidos ditos Socialistas da família do PS Português quando apresenta um projecto não o apresenta faseado.
 
Que gostarias de ver em Portugal? 
Um projecto de futuro ou mais um sonho futuro: Gostava que Lisboa e Porto tivessem um centro LGBT com documentação, biblioteca, com promoção de cinema, música, arte, debates e festas temáticas.
 
 
Fotos gentilmente cedidas por José Carlos Tavares, a quem estamos muito gratos pela visibilidade e trabalho numa altura tão complicada.