História LGBTI+ em Portugal: levantar o véu a um passado de invisibilidade e repressão
Quarenta anos decorridos desde a despenalização da homossexualidade com a publicação do Código Penal de 1982, convocou-se para os passados dias 27 e 28 de Maio um encontro sobre História LGBTI+ em Portugal.
Académicos e activistas reuniram-se no ISCTE, em Lisboa, para partilharem as suas experiências e investigações. Desta conferência resultou uma evidência paradoxal: o enorme avanço de conhecimento que se aportou ao tema, num evento inédito e há muito necessário, deixou perfeitamente claro o quão pouco sabemos sobre a nossa História.
Os pioneiros do activismo. Quando começamos a desbravar um passado quase inexplorado, o caminho mais seguro é ouvir quem o viveu e pode dar dele testemunho. À mesma mesa, na primeira e na última sessão do encontro, estiveram os nomes pioneiros do activismo LGBTI em Portugal. Por eles ficámos a saber que antes das bandeiras arco-íris, das festas e paradas, por cá só havia silêncio. Silêncio e isolamento, apenas rompidos em momentos traumáticos e de luta, em que a união era a única forma de garantir a sobrevivência individual e colectiva. Primeiro com a batalha contra a SIDA, nos anos noventa, que pôs em andamento o associativismo, as manifestações, a contestação organizada. Depois, com a morte de Gisberta em 2006, que impulsionou o activismo trans e deu às letras mais esquecidas do acrónimo um lugar dianteiro nas marchas do Orgulho.
Da Revolução à pandemia. Depois do 25 de Abril, à medida que nos afastávamos dos anos obscuros da ditadura, o caminho não foi feito sempre em passos progressivamente mais seguros, livres e felizes, como o esperaríamos. Quando ainda mal nos tínhamos habituado à possibilidade de um lugar ao sol no Portugal democrático, a SIDA desfere um violento golpe que nos atira de volta ao poço do estigma e da vergonha. O medo da doença teve o efeito insidioso de deslaçar os frágeis vínculos em que já se podia reconhecer uma comunidade LGBTI. Era ainda nos bares, clubes e discotecas, nos espaços de diversão nocturna que as pessoas se sentiam mais livres, e era aqui também que se recrutavam voluntários para as causas e os movimentos. Com a chegada da pandemia a Portugal, em meados dos anos oitenta, por medo do contágio o público deixou de frequentar estes espaços e poucos foram os que sobreviveram a estes anos (o Finalmente e o Trumps, na capital, são as duas notáveis excepções). Estas casas, que depois de 1974 tinham florescido e celebrado a liberdade com plumas e purpurinas, na que foi talvez a idade de ouro dos shows de travestismo em Portugal, fechavam agora portas e deixavam a comunidade sem os seus espaços de encontro e socialização.
A longa noite da ditadura. Também a história dos quarenta anos anteriores à Revolução está ainda em grande parte por escrever. É mais visível a perseguição que a polícia movia aos homossexuais, o cerco que lançava aos que procuravam satisfazer o desejo nas ruas de Lisboa. Há talvez quem pense que as autoridades fechavam os olhos e se consentia o desvio, desde que devidamente escondido. Pelo contrário, perseguia-se activamente, elaboravam-se estratagemas para apanhar os degenerados, lançava-se o logro aos incautos que vasculhavam nos recantos habituais do “cruising”. Respaldada pela lei vigente (alterada apenas há 40 anos, sublinhe-se), a polícia do Estado Novo ferreteava com cadastro criminal uma minoria já politicamente proscrita e socialmente invisível. Quem ousava romper com esta condição predestinada assegurava para si a vigilância permanente da PIDE e um futuro de portas fechadas, não obstante o talento que possuíam ou o valor do seu trabalho – inegável em pessoas como a jornalista Virgínia Quaresma ou a compositora Francine Benoît, duas mulheres lésbicas que desafiaram as convenções. Surgem já no final do regime as primeiras vozes de libertação e testemunhos da opressão, por exemplo na escrita de Natália Correia, Guilherme de Melo ou Álamo Oliveira.
...perseguia-se activamente, elaboravam-se estratagemas para apanhar os degenerados, lançava-se o logro aos incautos que vasculhavam nos recantos habituais do “cruising”. Respaldada pela lei vigente (alterada apenas há 40 anos, sublinhe-se), a polícia do Estado Novo ferreteava com cadastro criminal uma minoria já politicamente proscrita e socialmente invisível.
A História trans por escrever. Quanto mais recuamos no tempo maior dificuldade sentimos em encontrar elementos disponíveis para escrever a História. Só com redobrado estudo e investigação podemos resgatar do esquecimento as fontes que nos permitem compreender as realidades queer de outros tempos. Mas esse problema também se coloca em décadas mais próximas de nós, quando tratamos de pessoas sempre atiradas para as margens e que, mesmo dentro da comunidade, se viam relegadas para segundo plano. Identificadas por rótulos que foram evoluindo e que carregavam os preconceitos de cada época, as pessoas trans têm um passado opaco e extraviado tão próprio daqueles a quem a sociedade sempre condenou à marginalidade. A morte de Gisberta foi o ano zero para o movimento pelos direitos e visibilidade trans e a descoberta das histórias de sobrevivência das gerações anteriores.
Tempo de retrocesso? Se um passado traumático inspira a luta por um futuro melhor, passados quarenta anos podemos congratularmo-nos pelas conquistas recentes em matéria de direitos, de igualdade e de visibilidade. Mas no campo das mentalidades, como foi referido por vários conferencistas, temos sofrido um sério “backlash” motivado pela crescente onda reaccionária que tem corrido o mundo ocidental. É um combate que se trava diariamente, por exemplo num sistema de saúde ainda não preparado para lidar com as nossas preocupações e aspirações, formatado por uma matriz heteronormativa que considera tudo o que está fora de si como anómalo. A cultura é talvez a melhor arma de que dispomos para enfrentar esse desafio, e não é de menosprezar o contributo de festivais como o Queer Lisboa, que nos últimos 25 anos vem divulgando o cinema de expressão LGBTI dentro e fora da comunidade.
É um combate que se trava diariamente, por exemplo num sistema de saúde ainda não preparado para lidar com as nossas preocupações e aspirações, formatado por uma matriz heteronormativa que considera tudo o que está fora de si como anómalo.
No place for old people. Ainda uma nota de atenção para a última fase da vida. Numa comunidade que idolatra a juventude, a terceira idade é um lugar não falado e sem existência, como se fosse apenas uma realidade heterossexual. É irónico que num encontro desta natureza, em que ficou evidente o pouco que sabemos sobre o nosso passado, se tenha falado tanto de “idadismo”, a discriminação para com os mais velhos. São eles que carregam a experiência e a memória que urge partilhar e registar, sob o risco de perpetuar a ignorância sobre a nossa História comum.
Esta é a minha breve, parcial e incompleta síntese das sessões a que assisti (o programa pode ainda ser consultado aqui). Gostava, por fim, de lançar dois apelos à comissão organizadora do encontro. O primeiro é que se reúnam em publicação própria os textos das comunicações apresentadas, compilando assim o conhecimento partilhado nesses dois dias. Em segundo lugar, que nos voltemos a encontrar no próximo ano para uma nova edição desta conferência. O sucesso de participação, o interesse do tema e o longo caminho que ainda falta desbravar justificam a regularidade anual de um evento como este, que tanto demorou a fazer-se e que não podemos voltar a perder.
Pedro Leitão