Jó Bernardo e Valeria Vegas em conversa sobre as realidades e as representações trans em Portugal e Espanha
A sessão do filme “Vestida de azul” no Batalha Centro de Cinema, em colaboração com o Queer Porto, foi o pretexto para uma conversa com Jó Bernardo, pioneira do activismo trans em Portugal, e Valeria Vegas, jornalista espanhola e autora de vários livros, entre os quais a biografia de Cristina “La Veneno”. As duas mulheres trans falaram de exclusão e marginalidade social, referências e visibilidade mediática, expectativas, conquistas e decepções do activismo nas últimas décadas.
Um marco na visibilidade trans. “Vestida de azul” de 1983 é um documentário realizado por Antonio Giménez Rico que acompanha seis mulheres trans na Espanha da transição para a democracia. Salvo do esquecimento pela comunidade LGBTQ+, que o converteu em objecto de culto, à data de estreia o filme percorreu o circuito comercial onde foi visto por mais de 250 mil espectadores, chegando ainda ao festival de cinema de San Sebastian, o mais importante do país. Valeria Vegas considera-o um marco importante na visibilidade das pessoas trans, mostrando a sua realidade a uma sociedade que acabava de romper com a longo regime que as tinha brutalmente submetido a um estado de repressão e apagamento. O filme é de uma sinceridade desarmante: tudo o que vemos é relatado na primeira pessoa. Valeria conta que o realizador pôs a câmara a gravar e deixou que cada mulher deixasse o seu registo, cru e directo, como ainda hoje é raro vermos.
A movida madrilena. Pode ter sido rodado em Madrid, mas os testemunhos de Loren, Renée, Nacha, Josette, Eva e Tamara espelham o que se passava em Portugal, França, ou noutro país qualquer. A condição de absoluta marginalização social das pessoas trans era universal, conclui Valeria. As suas vidas cruzam-se com a prostituição, naquela que é para a maioria a única forma de sobrevivência, ou o lugar aonde se volta quando as opções que se tentam para fugir das ruas – nos clubes nocturnos ou em empregos ditos “normais” (vemos uma delas a trabalhar num cabeleireiro) – se fecham subitamente. A movida, o movimento cultural e artístico que se seguiu à morte de Franco e que explora as expressões e os prazeres que antes estavam proibidos, abriu espaço a este mercado do sexo que se desenvolveu nas ruas de Madrid. No filme, as mulheres reconhecem a vida dura que levam mas supõem-na temporária. Suportam as dificuldades daquela condição por um melhor futuro que esperam que não tarde a chegar. Na verdade, ele nunca se materializará. Valeria defende por isso que, mais do que um movimento social com uma proposta de mudança, a movida foi uma bandeira artística apropriada por alguns políticos para promoverem a imagem de uma Espanha desempoeirada e moderna. Era, além disso, uma realidade circunscrita à capital e a restrita a muitos poucos. Não foi seguramente o projecto de emancipação que muitos pediam.
Sororidade e referências. Jó revela-nos que também ela conheceu pessoalmente algumas das mulheres que vemos no filme. Foram suas colegas de rua, suas irmãs e amigas. Valeria acrescentará, uns minutos depois, a importância dos vínculos de solidariedade que se criam entre as excluídas, a sororidade e os laços de afecto que são mais fortes (e tomam o lugar) da família de sangue que as rejeitou. E tal como as histórias que passam de pais para filhos e de avós a netos, também estas famílias têm a sua colecção de contos, de figuras mais ou menos mitificadas, num legado que se vai passando aos novos membros que chegam àquele lar levantado na exclusão. No processo de libertação das identidades trans, Valéria lembra a importância das referências – das figuras, dos nomes, das histórias – ainda que nessas imagens possa haver “aspectos negativos”. Elas não escolheram tornar-se símbolos de visibilidade, explica, e por isso não se lhes pode exigir que sejam exemplares. Basta que existam, com toda a desorientação e contradição que caracteriza qualquer ser humano, e que isso sirva de modelo para tantas pessoas que partilham experiências semelhantes. As mulheres que o filme acompanha são também reprodutoras do preconceito estrutural do mundo em que vivem. Têm um discurso e uma visão “transfóbica” delas próprias, comenta Valeria, que é espelho e produto de um tempo que não lhes forneceu outros códigos ou exemplos, outras referências.
Descobrir (e perder) “o mundo”. Jó fala sobre a experiência portuguesa e da total ocultação das pessoas trans até aos anos oitenta. Refere a importância da imigração brasileira no desbravar de possibilidades para mulheres como ela, ainda que fosse o caminho do trabalho sexual no estrangeiro. Seguindo esse fluxo, Jó partiu para Madrid e para Paris. Foi nestas cidades, conta, que as trans portuguesas conheceram o mundo (“as espanholas já levavam duas décadas de avanço”), cruzando-se com outras comunidades de migrantes sobretudo da América Latina. Valeria desmistifica esta imagem de avanço de Espanha face a Portugal com o exemplo das protagonistas do filme. Conta que dez anos depois da estreia o realizador procurou as mesmas seis mulheres com a intenção de dar uma continuação, uma segunda parte ao filme. Quando as descobriu e constatou a situação em que vivam, imediatamente desistiu da ideia. Tinham passado os anos de juventude e elas encontravam-se agora num estado ainda mais vulnerável e precário, a que se associavam novos problemas de toxicodependência e as complicações da infecção com o VIH. Das seis, apenas duas estão hoje vivas.
A “miragem” do activismo trans. A esse propósito, Jó recorda que o activismo LGBT em Portugal teve o seu momento fundador no movimento de apoio aos seropositivos, em particular através da Associação Abraço. Mas logo rectifica para precisar: referia-se apenas ao activismo “L” e “G”. As questões trans virão muito mais tarde. Eram então muito associadas a pessoas que trabalhavam na prostituição. Jó denuncia o imenso preconceito e elitismo que existia dentro da “comunidade” (com aspas, como faz questão de sublinhar). Os líderes das primeiras organizações não queriam partilhar a fotografia com trabalhadores e trabalhadoras do sexo, e a causa trans acabou por ficar relegada para um plano recuado do movimento. Não se baseou, de resto, no apoio social às pessoas em situação mais frágil, como acontecia em França e em Espanha. Para Jó, o activismo trans em Portugal desfez-se como “uma miragem”.
Inimigos e aliados no audiovisual. Também em Espanha a história recente do movimento trans foi uma de avanços e recuos. Se, como Valeria conta, o cinema revelou-se um importante aliado nos anos oitenta – e o “Vestidas de azul” é disso um bom exemplo – a televisão dos noventa deitou tudo a perder. Com a proliferação das estações privadas e a luta pelas audiências, o crescente sensacionalismo fez com que essas mulheres fossem mostradas como bonecas sexuais ou freaks. “A representação era horrorosa”, afirma Valeria, lembrando que as coisas apenas começaram a melhorar há cerca de uma década. E ilustra essa evolução com o caso de um talk show que em 1998 colocou aos espectadores a pergunta “Concorda que um transexual tenha ganho a Eurovisão?” (referindo-se à vitória de Dana International nesse ano), deixando ao vox populi a ilusão dessa prerrogativa. Recentemente, foi a própria Valeria a receber um convite para um debate televisivo sobre a questão trans, num modelo do tipo prós e contras. A poucos dias da gravação, recebeu um telefonema da produção comunicando-lhe que o debate tinha sido cancelado. A razão? Não se tinha encontrado quem quisesse defender publicamente o lado contra.
É um sinal das recentes mudanças positivas. A ficção televisiva tem-se tornado um aliado, e Valeria teve nisso um importante contributo ao estar envolvida na produção de “Veneno”, uma das séries mais populares em Espanha nos últimos anos. Para este ano, está prevista a estreia de uma nova série que rouba o título ao filme de 1983 e o homenageia, de certa forma tomando o lugar da sequela que Antonio Gimenez nunca chegou a filmar. Jó elogia o trabalho da companheira de conversa e diz que ainda falta fazer esse trabalho de “arqueologia” do passado trans em Portugal. E devemos reconhecer e lembrar que o seu papel pioneiro no activismo, enquanto fundadora da ªt. – Associação para o estudo e defesa do direito à identidade de género e da Esquina Cor-de-Rosa, a primeira livraria LGBTI+ do país, fazem dela uma figura incontornável nesse processo.
Pedro Leitão
Fotos: Batalha Centro de Cinema