A obra Kallocaína (1940), de Karin Boye (1900-1941), oferece um retrato sombrio de uma sociedade onde o Estado exerce controlo absoluto sobre os cidadãos em troca de protecção contra Estados vizinhos. No Estado Mundial, a individualidade é constantemente sacrificada em nome do colectivo, reduzindo o indivíduo a uma mera célula, sem outro propósito senão o de servir ao todo.
A narrativa gira em torno da invenção do cientista Leo Kall: um soro da verdade que, quando injectado, revela os pensamentos mais íntimos de quem o recebe. Este soro, chamado Kallocaína, torna-se uma ferramenta poderosa nas mãos do Estado, que o usa para garantir a lealdade absoluta dos cidadãos. Nem mesmo aqueles que seguem rigorosamente as leis estão a salvo, pois os seus pensamentos contra a ordem estabelecida podem ser descobertos e sancionados.
Com a Kallocaína, denunciar os segredos dos outros torna-se uma realidade. A confiança entre indivíduos desaparece, mesmo entre familiares ou amigos mais próximos, destruindo assim o último vestígio de vida privada.
Kall, como muitos outros cidadãos, apesar de expressar um forte apoio ao Estado Mundial, enfrenta um conflito interno entre essa lealdade e o seu desejo de preservar a individualidade. Sairá alguém impune depois de aplicado o soro da verdade? Será que Kall acabará por se tornar vítima da sua própria invenção? E o Estado Mundial, não terá as suas próprias fragilidades?
Estas e outras perguntas surgem à medida que folheamos as páginas deste livro, levando-nos a reflectir sobre o equilíbrio entre o colectivo e a individualidade, bem como sobre os perigos dos regimes totalitários utilizarem os avanços científicos para reforçar o controlo sobre os cidadãos.
Kallocaína é considerada uma das grandes distopias do século XX; no entanto, não recebeu o mesmo reconhecimento que 1984, de George Orwell, publicado posteriormente. A menor visibilidade da obra de Boye pode estar relacionada com o facto de ter sido escrita por uma mulher que, além disso, mantinha relacionamentos afectivos com outras mulheres. Com esta sugestão de leitura, espero contribuir para que a obra receba a atenção e o reconhecimento que merece. Que o género e a orientação sexual sejam cada vez menos factores penalizadores na literatura e na vida.
Tradução do sueco: João Reis
2.ª edição 2023
Páginas 232
ISBN 978-972-608-274-3
Editor: Antígona
Daniela Alves Ferreira