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Lobo e Cão: a ilha dentro da ilha

lobo e cão

Numa conversa após a exibição do filme “Lobo e Cão”, a realizadora Cláudia Varejão contou ao público que a ouvia no Cinema Trindade, no Porto, como durante a sua residência artística em Rabo de Peixe, na ilha de S. Miguel, se cruzou com um grupo de pessoas queer, e em particular de mulheres trans, que pisavam com firmeza as ruas da vila, desafiando as ideias importadas que tinha desse lugar. Decidiu então saber mais sobre aquelas pessoas e a sua realidade.

 

A primeira imagem, de surpresa a deslumbramento, foi enegrecendo com as histórias de opressão e de abuso que a realizadora ia recolhendo. Ouviu, entre tantas, a história de N., mulher trans abusada sexualmente no seio doméstico antes de ser atirada para a rua, onde sobreviveu vendendo-se aos homens da ilha, os mesmos que a tinham violentado. Depois, vieram propor-lhe um trabalho como correio de droga. N. aceitou, mas, ao contrário do que lhe asseguraram, foi detida no país de destino. Contou a Varejão que a prisão na Suécia foi o melhor que lhe aconteceu: lá tinha um tecto seguro, comida e uma cama. E o mais importante, teve ajuda de profissionais que permitiram e a acompanharam a fase inicial da sua transição.

A equipa de produção reconheceu nesse momento que a emergência humana se sobrepunha a tudo o resto. A criação do primeiro centro de apoio no arquipélago à população LGBTI, a (A)MAR – Açores pela diversidade, é parte desse esforço de intervenção social. E o filme que lá tinham ido procurar, não poderia também contribuir para o mesmo fim? A comunidade queer e os habitantes de Rabo de Peixe foram então convidados a participar num exercício colectivo de expressão psicodramática, e foi nestas sessões de espoliação das histórias pessoais que se construiu a narrativa. Aqui também que se recrutou o elenco de actores não-profissionais que participam no filme (entre os quais, N.). Cláudia Varejão tinha até então trabalhado sobretudo no campo do documentário. Em “Lobo e Cão”, de câmara ao ombro e muito próxima dos rostos, do detalhe dos gestos, recorre à ficção para criar um espaço de liberdade, onde as realidades queer da ilha de S. Miguel podem florescer e sagrar-se. É a ilha dentro da ilha, como ela diz.

Esse espaço insular em filme pode ser um porto de abrigo mas não deixa de estar cercado e fustigado por temporais. Não permite ignorar a brutal pressão social para a conformidade, que começa a frio na casa de família e é insidiosamente vigiada nas ruas por senhoras à janela e pelos homens nos cafés. Ou o peso do aparato religioso, que fascina e é aproveitado pelos marginais para adornar a própria identidade e, talvez assim, tentar uma comunicação íntima e clandestina com o divino. E lembrar que todas aquelas vidas oscilam no jugo da miséria e seus precipícios, o crime, a violência, a depressão, e tenta-se a fuga da ilha quando mais nenhum caminho parece viável. 

O filme cresceu nesse chão difícil e também ele foi actor nos dramas pessoais dos seus participantes. A mulher que tinha sido escolhida para encarnar o papel de mãe da protagonista foi impedida pelo marido nas vésperas das filmagens. Aquela brincadeira em que a esposa se tinha metido passou das marcas quando ele a viu em casa com uma cor de cabelo diferente, já pronta para o papel – primeiro mudam-lhe o penteado, depois as ideias. No caso de Rúben, que interpreta o outro protagonista, houve o que pareceu à realizadora uma crise de identidade instigada pela imiscuição da personagem no actor. O debate contra o binarismo fez derrocar nele vários medos e o Luís que vemos no filme deve vida e luz à catarse de Rúben.

Alguém em conversa, no final da sessão, notou que apenas uma vez é mostrado o horizonte, e logo indicado por uma personagem estrangeira à ilha. Quase todos os que nela habitam olham para dentro e para o chão, bem longe do mar. «Não vejo o rosto a ninguém» é o primeiro verso do poema de Sá de Miranda a que o filme foi roubar o título. Também Cláudia Varejão veio de fora para, no meio do oceano, indicar o horizonte.

 

Pedro Leitão