Lobo Xavier é um mentiroso, hic et ubique
Como pessoa com consciência política que sou, costumo seguir vários programas de comentário político. Entre eles, sigo o “Princípio da Incerteza”, herdeiro do “Circulatura do Quadrado” (este, por sua vez, do “Quadratura do Círculo” e por aí além).
No episódio de 10 de Julho de 2022 deste programa, a propósito do caso daquela família de Famalicão, cujos pais insistem em proibir os filhos de frequentar a Disciplina de Educação para a Cidadania (e a quem o I Online decidiu dar vergonhosamente espaço para espalhar chalupice), Lobo Xavier - já depois dos outros dois comentadores se terem pronunciado sobre o caso - diz, e dou-me ao trabalho de transcrever, na íntegra, a sua resposta à pergunta inicial do moderador (“E o António, o que diz?”):
“Eu sou pelos pais. Claramente, os pais… nesta linha: os pais tomam as decisões - aliás, as crianças não são nenhuns, nenhuns inocentes, não são jovens inocentes, são crianças que… já capazes de se exprimir e mostrarem a sua vontade. São jovens - aliás, um deles já está completamente fora do impacto da Disciplina de Cidadania - e os pais assumem as consequências! E por isso é que eu - eu só não estou de acordo com o que disse a Alexandra e com o José Pacheco Pereira porque esse assunto estava morto.
Quer dizer, os pais, ao ver o conteúdo, em matéria de Igualdade de Género, as Orientações Gerais fornecidas aos professores em matéria de Igualdade de Género, revoltaram-se! E eu entendo-os. Porque aquilo que lá estava, era conversa em.. pretensamente científica, sobre a escolha cultural do sexo; que, de facto, o sexo, não temos que estar com o sexo que de f[acto] que a Natureza nos dotou; que qualquer um tem a liberdade de escolher e que isso é uma criação cultural (de) livre; e que, de facto, aquelas pessoas que se comportam estatisticamente como uma certa normalidade ou tendência biológica, no fundo, são inferiores morais - essa, essa orientação estava lá toda nessas Orientações e os pais revoltaram-se contra isso e quiseram marcar posição.
Goste-se ou não da… a Cidadania é obrigatória, eu bem sei, mas não há, não faltam é alunos a passar com negativas a Matemática e a Português, portanto, se passarem com negativas a, a Cidadania, ou com faltas a Cidadania - como passam com faltas a Educação Física - não havia grande mal ao mundo. Eu, eu pessoalmente, mantinha os meus filhos, se fossem equilibrados, até para me contarem, para, para, para a galhofa, sobre o discurso das vinte e sete casas-de-banho para os meninos, e das corezinhas azuis, proibir as cores azuis e cor-de-rosas - eu gostava que eles me trouxessem para casa, material para a galhofa.”
A intervenção dele prossegue, depois disto, com iguais asneiras. Os negritos e itálicos são meus.
António Lobo Xavier não é um grunho
Eu não vou versar-me sobre o papelão destes pais que, debaixo de uma suposta preocupação com a educação dos seus filhos, os estão a usar como adereço político. Isso já tem sido amplamente discutido por outras pessoas. Quero falar sobre o próprio António Lobo Xavier.
E quero falar de Lobo Xavier porque ele, para começar, não é nenhum grunho. Ele é advogado, é uma pessoa com uma vasta cultura, é extremamente bem relacionado nos meandros da política - não tivesse ele sido Deputado pelo CDS-PP cinco vezes - e até faz parte do Conselho de Estado do Presidente da República. Ou seja, é uma pessoa com gravitas, pública e política.
Além disso, é membro fixo do referido programa - o mais antigo, nas suas várias encarnações, de comentário político, ainda no activo em Portugal. Um programa que é seguido, apesar de tudo, por uma boa quantidade de gente (ou então a sua longevidade é um artifício de quem os decide manter no ar). Boa quantidade de gente, essa, de uma população envelhecida, que olha para figuras como Lobo Xavier como representantes de uma certa política “do antigamente”, para tomar o pulso à espuma política dos seus dias. E que já olha com desconfiança para “essas «modernices» dos LGBTQIA+s”.
Que seja da escolha da própria direcção do programa, ao seleccionar quem são os seus comentadores, subordinar a sua selecção, em número e em espécie, à lógica destes estarem afectos aos chamados partidos do Arco da Governação (PS, PSD e CDS-PP), que já nem existe, é uma evidência. Que isso foi sempre uma desculpa primária para excluir do plano de debate político uma série de partidos (principalmente à Esquerda), também. Que se mantenha um «mono» como o Lobo Xavier, cujo partido nem sequer tem mais um único Deputado na Assembleia da República, no ar, já começa a ser abuso.
Ora eu até já dava isso de barato, mas quando uma pessoa com a reputação dele é colocada no programa para debitar em horário nobre absolutas mentiras, avançando os bichos-papões da Extrema-direita mais trauliteira do mundo, o abuso já começa a ser insulto. A título de quê, pergunto eu, temos de ver um discurso mentiroso como o acima citado normalizado?
A falta de gente que é da comunidade LGBTQIA+ no comentário político dá nisto
Que ele eventualmente se defina como “Conservador” e que isso, nos dias de hoje, se tenha convertido em defender uma agenda-fantasma, que só existe na cabeça destas pessoas que, à falta de ter alguma coisa relevante para dizer aos eleitores - a prová-lo, a dizimação do CDS-PP - já é um sintoma dos nossos dias.
Mas que não haja uma alminha, naquele programa que lhe diga muito claramente “eh pá, oh António, pare lá com isso, que isso é uma mentira” acaba por ser sintomático daquilo de que me queixei nas minhas crónicas anteriores - principalmente, na última, sobre o Ricardo Araújo Pereira - sobre a falta de vozes (pelo menos, assumidamente) LGBTQIA+ no espaço de debate público e político - mesmo quando o tema é a própria comunidade.
Que o Pacheco Pereira, que é alguém a quem até às vezes reconheço sensatez, volta e meia me surpreenda com patetices como a sua última crónica e que, portanto, militantemente desinformado como é, neste tema (o que não o impede de se pronunciar sobre ele, de qualquer modo) não o tenha feito, já seria de esperar. Agora, quando a Alexandra Leitão - supostamente, a representante do Partido Socialista - não diz nada para o contrapor, já é má sina.
Era assim tão difícil? Segundo a transcrição acima (que pode ser confirmada consultando a versão áudio do programa, em podcast, numa qualquer plataforma de podcasts - na minha gravação, a partir de 35’28’), Lobo Xavier assume que as crianças não são inocentes. Isto é, que elas já sabem alguma coisa de sexualidade.
Se as crianças fossem uma preocupação dos Conservadores, eles eram os maiores defensores da Disciplina de Cidadania
Não se pergunta ele, em nenhum momento, contudo, como é que chegam até esse conhecimento. Responder a essa questão talvez trouxesse à discussão uma das razões justamente pela qual a disciplina coloca a sexualidade no centro da cidadania. Porque se as crianças já sabem o que é o sexo sem ser precisa a Disciplina de Cidadania e nem estes pais parecem estar disponíveis para falar sobre isso com os filhos, é porque ou ouviram alguma coisa dos colegas de escola ou apanharam algum conteúdo mais ou menos explícito em que o sexo aparece em grande plano.
No tempo em que eu era criança e adolescente, não havia internet. Mesmo assim, o acesso à pornografia já existia. Ainda que houvesse a proibição de vender pornografia a menores, garanto-vos que ela aparecia nas escolas - e não era só porque era momentaneamente surrupiada a adultos. Como criança e como adolescente, eu adquiri jornais, revistas e até cassetes de VHS de pornografia, comprando-as directamente em estabelecimentos. Se era assim na altura, imagine-se o quão mais fácil é hoje.
O problema não é a pornografia. A pornografia, para os adultos, que já têm uma formação sexual estruturada, pode ser uma óptima fonte de prazer - e sim, até de saúde sexual, mental, emocional, desde que usada de modo equilibrado.
O problema é quando a pornografia é a forma como alguém mais novo entra naquele que é, para a maioria de nós, o inevitável mundo do sexo. Não preciso de ir muito longe para explicar como a pornografia cria problemas de alienação quando usada em excesso; como cria expectativas corporais e de performance irreais, porque se trata de um produto artificial - com as consequências expectáveis na auto-estima, nas relações, etc.; e como, acima de tudo, pornografia não é formação sexual.
E - ao contrário da propaganda reaccionária, que insiste em atacar a Disciplina de Cidadania - vice-versa, já agora. Informar humanos, cidadãos em formação, do que são práticas saudáveis de sexualidade é tanto incentivar ao sexo, como ensinar alguém as regras da estrada é incentivar essa pessoa a conduzir um camião TIR.
Se a pornografia não se pode confundir com formação sexual, muito menos o podem ser as conversas entre crianças e adolescentes acerca do que estas acham que é o sexo - a alegoria da expressão “um cego a guiar outro”.
Posto isto, quando alguém como Lobo Xavier tem problemas com a sexualidade ser ensinada nas escolas e os pais não se sentem confortáveis para falar disso, mas as crianças são inevitavelmente, por uma via ou por outra, expostas ao sexo, como pretende ele - especialmente num mundo em que há gravidezes juvenis (e o seu partido é historicamente contra o aborto e a contracepção) e infecções sexualmente transmissíveis (que dispararam nos mais jovens), crianças são violadas (uma boa parte delas, pela Igreja, de que o seu partido é o lobby político), como os recentes casos no Brasil e nos EUA têm nos tristemente lembrado - como pretende ele que a situação seja resolvida? Vai prescrever o cilício da Opus Dei?
Saliente-se que uma criança ou um adolescente informado não só tende a não ter tanto interesse pela pornografia e, pelo contrário, a ter uma atitude mais responsável em relação ao sexo (não só quanto ao momento de iniciar a prática, mas também em termos do planeamento familiar e protecção de infecções sexualmente transmissíveis) como são pessoas mais capazes de identificar o abuso sexual e de o denunciar.
Ao fazer orelhas moucas deste último argumento, a Direita que Lobo Xavier representa expõe que a sua preocupação histriónica com a pedofilia é uma farsa que tem sido usada constantemente para justificar a sua perseguição à Comunidade LGBTQIA+ (quando a investigação comprova que a orientação sexual não está relacionada com a propensão para a pedofilia) e que nada tem a ver com a preocupação com o bem-estar das crianças.
Isto não é um problema dos pais de Famalicão: é da sociedade
Quando ele diz que “os pais assumem as consequências” ele está propositadamente a obscurecer o problema: as pessoas não são ilhas. Não cabe aos pais assumirem as consequências futuras quando eles, como cidadãos incorrectamente informados sobre a sexualidade, não tiverem cuidado com infecções sexualmente transmissíveis que podem contrair e/ou transmitir.
Não são os pais dos alunos ignorantes que se vão responsabilizar quando estes, não sabendo a importância do consentimento no sexo, decidirem que têm o direito de forçar sexo a alguém mais fraco.
Nem vão ser estes pais que vão responder pelos filhos quando estes, numa idade adulta, acharem que um homem tem direito a bater numa mulher ou desqualificá-la para um cargo laboral; ou atacar alguém de uma minoria porque é diferente.
Tudo temas abordados na Disciplina de Cidadania, que os seus filhos continuam sem poder frequentar. Aliás, segundo o próprio pai, na entrevista acima referida, a chalupice já não se limita mais à Disciplina de Cidadania e já em História, por exemplo, quando é dado determinado tema, um dos pimpolho do senhor Mesquita levanta-se e caminha para fora da sala. Entramos numa realidade alternativa, certamente.
Todos - menos os pais - pagam a potencial factura por causa da decisão errada dos pais, quando estes não permitem aos filhos aceder a esta informação. Todos pagamos, desde os próprios filhos, passando pelas potenciais vítimas daqueles, até à sociedade que, em vez de progredir, tem de estar a aguentar o peso morto que estas pessoas representam, enquanto insistem em manter-nos numa mentalidade contraproducente e medieval.
Lobo Xavier mente descaradamente
Tudo isto Lobo Xavier não comenta. Mas o que se pode esperar de um indivíduo que trata uma disciplina tão fundamental como motivo - cito - de “galhofa”? E que diz, com a maior das displicências, que se a ela faltarem, “grande mal não virá ao mundo”?
Ora isto leva-nos ao restante do discurso: é que se o que está acima dito tem mais a ver com valores, o que se segue já não tem nada a ver com essa dimensão do ser humano. Falo das mentiras despudoradas.
Para já, se Lobo Xavier fosse um grunho da Direita com outra craveira, perdoava-lhe a grunhice de confundir sexo, género e expressão de género: ao contrário da confusão que ele propositadamente faz entre as três coisas, ninguém escolhe o sexo (os órgãos sexuais) com que nasce: por isso é que há gente que nasce sexualmente masculina ou feminina, mesmo que o seu género - a sua identidade sexual - seja diferente dessa realidade física, bem como há gente que nasce intersexo, isto é, com características sexuais dos dois sexos.
O que cada pessoa pode escolher é assumir, é expressar, é viver o seu género - ou não. Mas isso não muda o seu género. Muda apenas se essa realidade da identidade de género da pessoa é visível exteriormente ou não. Eu sei que para quem acha que as pessoas não podem fazer do seu próprio corpo o que querem, isso parece ser um conceito alienígena, mas a realidade é essa e confundir as pessoas em relação às três dimensões é desonesto.
Mas mais: no seu discurso, Lobo Xavier justifica o ultraje dos pais com as supostas Orientações que teriam sido fornecidas aos professores. Ele começa por listá-las, falando em “vinte e sete casas-de-banho para os meninos”, a “proibição do azul e do rosa”, a veiculação da ideia que quem é heterossexual e cisgénero (que ele sujeito designa por “normalidade”, com isso classificando a contrario sensu - uma forma de leitura muito comum na sua área de trabalho - os outros, como anormais) é “moralmente inferior”, etc.
O primeiro ponto desta mentira descarada é que, se estas Orientações sobre a disciplina era - como ele próprio diz - para os professores, como é que os pais obtiveram acesso a elas?
Em segundo lugar, onde é que está isso? Eu fui ao website do Ministério da Educação e o que encontro sobre as Linhas Orientadoras para a Disciplina de Cidadania, em matéria de Igualdade de Género (que é o que Lobo Xavier afirma que tanto incomodou os pais) é isto:
“A Educação para a Igualdade de Género, que visa a promoção da igualdade de direitos e deveres das alunas e dos alunos, através de uma educação livre de preconceitos e de estereótipos de género, de forma a garantir as mesmas oportunidades educativas e opções profissionais e sociais. Este processo configura-se a partir de uma progressiva tomada de consciência da realidade vivida por alunas e alunos, tendo em conta a sua evolução histórica, na perspetiva de uma alteração de atitudes e comportamentos.”
Eu exijo que ele nos mostre onde está a ler acerca da proibição das cores, das vinte e sete casas-de-banho e da ideia que quem é cishétero é moralmente inferior.
No título que dei a esta peça, eu não disse que Lobo Xavier disse uma mentira. Eu disse que ele era mentiroso. A diferença entre uma situação e a outra é que numa, trata-se de um caso pontual. A outra, é um comportamento reiterado. E a verdade é que esta não é a primeira vez que Lobo Xavier vai para a televisão repetir estas mentiras sem qualquer base factual. Já o ouvi a dizer iguais mentiras pelo menos desde os tempos da Circulatura do Quadrado. E, mais uma vez, nessa altura, Ana Catarina Mendes, também do PS, não o confrontou. Qual - é - a - dificuldade?
Conforme se o vai deixando repetir estes fantasmas da Extrema-direita, vamos normalizando estas narrativas que acabam, em última instância, por colocar uma série de pessoas em perigo.
Ao mesmo tempo que ele chama o Ministério Público de “activista”, porque está a lutar pelos interesses dos filhos do casal (mais do que o próprio casal) e dos nossos, sociedade em geral, passa por cima do activismo dos pais - que, como disse, não têm prurido em usar os próprios filhos como adereço e arma de arremesso político - pelo seu próprio activismo político contra o fantasma da "ideología de género”.
Ora ele é um comentador - suponho que pago para exercer o papel que exerce. É um fazedor de opinião. Tem ampla plataforma para isso. Logo, tem obrigação de ser tido sob responsabilidade do que diz. Não é por causa de ele ter cumprido - e cumprir, aliás - posições oficiais de Estado que ele é menos escusável a ter cuidado com o que diz e os assuntos sobre os quais se versa. Pelo contrário.
Então, por isso mesmo, eu quero que o Lobo Xavier me diga onde é que estão todas as coisas de que ele acusa a Disciplina. Quero perceber como os pais tiveram acesso a tal informação aparentemente tão secreta e onde é que ela está. Porque eu… eu não a encontro. Em lado nenhum. Pede-se a aclaração: que ele apresente as bases documentais do que continuamente diz sobre a Disciplina de Cidadania ou que se retrate publicamente, no próprio programa de cujo painel faz parte há anos, como aquilo que é: um mentiroso. Hic et ubique.
PS: a ERC serve para quê, afinal?
João Barbosa