Manas
As palavras têm poder. A força de uma palavra provoca um murro no estômago. As palavras que não conhecemos são vazias. Ecoam como uma folha branca de papel em nós. Ele tropeçava em palavras. Tropeçava em palavras que desconhecia. O desenho das letras era-lhe familiar.
Contudo, a sua força e o seu poder, estavam ainda por perceber. Tal como os murros no estômago. Maria Amélia. Olhou para trás. Não viu ninguém. Maria Amélia. Olhou para os lados. Não viu ninguém. À sua frente, um grupo de rapazes gritava por uma tal de Maria Amélia, que parecia estar suficientemente longe, para não conseguir ouvir o seu nome a ser pintado pelo vento. Sentado no chão, a mão desenhava curvas e rectas, com um pau de madeira, um resto de um tronco caído, na terra seca. Olhava os carreiros das formigas. E assustava-se, sempre que via uma lagartixa. Bicha. Olhou para os lados. A lagartixa tinha desaparecido.
As páginas vazias de um dicionário de criança, aos poucos, ganharam formas. São caracteres que vomitam conceitos e significados, que o entristecem. Deixou de fazer desenhos na terra. Percebeu que o bicho raro e estranho, não era o lagarto que o assustava. Percebeu que o bicho era ele. Ele era um bicho fêmea, que carregava às costas, uma mochila cheia de dicionários de adultos. As palavras têm poder. São palavrões que provocam murros no estomago.
Bicha. Não digas essa palavra. Pediu à amiga. Não foi com intenção. Disse ela. Bicha. Não gosto dessa palavra. Disse ele. Essa é a palavra da vergonha. Essa é a palavra da vergonha, que carreguei todos estes anos.
Durante anos, juntou todos esses dicionários. Arrancou-lhes as páginas. Juntou todos os paus de madeira, restos de troncos caídos. Com uma palavra mágica, acendeu o fogo. O fogo arde. O fogo queima. O fogo destrói. Queimou todas as páginas, conceitos e significados que aprendera, em tempos. O fogo salva. O fogo renova.
Com uma pinça delicada, desmontou essa palavra. Bicha. Pintou-a de várias cores, juntou-lhe uma pitada de riso, do seu riso. Se não podes vencê-los, troca-lhes as voltas. As voltas foram trocadas, nas voltas que a vida dá. Bicha. Ri-se ele. Ri-se ele e os amigos, em gargalhadas coloridas de quem aprendeu a desmontar palavras.
Um dia, alguém lhe vai dizer: “mana, é um comentário inofensivo, sinceramente não compreendo o problema, e muito menos percebo porque é que utilizar um pronome feminino é insultuoso.” Quando lhe contei a história do menino que fazia desenhos na terra, com ramos caídos, ele disse-me: “As palavras magoam e temos de ter atenção quando as usamos. Muitas palavras me magoaram no passado, mas agora entendo que não são as palavras em si, mas a forma como são usadas. Daí, não me importar com muitas delas hoje em dia.”
As palavras têm poder. Mas ele aprendeu a desmontá-las, a retirar-lhes o poder e a dar-lhes cor. Aprendeu que a vida não tem de ser feita de murros no estomago. E aprendeu a chamar manas, a todas as suas manas. Sejamos sempre manas, no verdadeiro poder dessa palavra de irmandade.
As palavras têm poder. Mas ele aprendeu a desmontá-las, a retirar-lhes o poder e a dar-lhes cor.
Peter Pina