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Maus Hábitos de Alana S. Portero: a importância de lermos mais autores/as trans

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"A tristeza era cada vez mais funda. A disforia, que nem sequer sabia que se chamava assim, já ocupava tanto espaço mental e tanto desagrado físico com nove malditos anos, que quase não deixava lugar para mais nada. Nos estudos, mais do que cumpridora, era quase brilhante; em tudo o resto era um desastre. Imaginava mais do que vivia, mas não tinha dotes artísticos que me arrancassem a mágoa, nenhum alívio me socorria, não sabia pintar a minha desgraça, nem me ocorria escrevê-la, para não deixar provas. De modo que a dançava ou me desdobrava e fantasiava com cenários de libertação. Evadia-me, sobretudo, através da literatura, do cinema e da música. Era uma espectadora de tudo o que me rodeava, mas não podia tocar em nada."

- Alana S. Portero, Maus Hábitos (Alfaguara, 2024)

 

 

Galardoado como um dos melhores livros do ano de 2023 em Espanha, Maus Hábitos de Alana S. Portero, chega agora a Portugal pela estampa da Alfaguara, mostrando ser, também aqui, uma das leituras queer obrigatórias para quem almeja compreender o sofrimento, a dor, o risco e a força de superação das experiências trans.

Este é um livro que nos fala de sofrimento, dor e violência mas não só. Retratando a cruel realidade social de um bairro operário madrileno em finais do séc. XX, marcado pelos consumos de heroína, pela miséria de famílias atravessadas pela violência e a exclusão social, pela insegurança policial e impunidade de crimes como o assédio sexual, a violência doméstica ou a violência homo/transfóbica, este livro fala-nos, entre outras coisas, de resistência e superação, de um processo de auto-descoberta e de aceitação fomentado pela construção de laços e modelos de identificação positiva.

Encontramos nesta obra inaugural de Alana a candura de uma criança trans que entre a infância, a adolescência e o início de idade adulta se debruçara com um sentimento de inadequação que a arrastara a um eremitério de solidão e isolamento. Partindo do bairro em que crescera, San Blas, e das diferentes mulheres com que co-habitava - Peruca, Lola, Gema e, especialmente, Margarita, a primeira mulher trans que conhecera e adorara - a jovem encontra nos adereços, nas conversas e comportamentos femininos um deslumbramento e identificação feminina que por décadas teria de dissimular em modelos cabulados de masculinidade viril.

É também na construção de personagens fortes, extreamente reais, próximas da pessoa leitora, que encontramos as circunstâncias de uma Madrid que se libertava das amarras do regime repressivo franquista nos anos 80.

Através de personagens chave, como Jay - a primeira paixão da adolescente -, somos remetidos ao bairro queer de Chueca, epicentro gay da capital Espanhola onde a autora retorna ao longo da obra para nos contar, também, o quotidiano das travestis e das trabalhadoras do sexo - Mourinha, Cartier e Chenchila.

 

"Ser homem, ser mulher, não ser nenhuma das duas coisas é algo que não pode experimentar-se nem construir-se a sós, o meu corpo de mulher precisava de provocar desejo por si mesmo, de ser definido por mãos que o quisessem, de se mover com liberdade, como se dança, e de provocar as respostas adequadas." - Alana S. Portero, Maus Hábitos (Alfaguara, 2024)

 

Figuras que, embora atravessadas pela pobreza, violência e decadência social, servem de inspiração, força e determinação para que a nossa personagem principal se liberte dos seus fantasmas, das amarras de uma identidade que não se sentia como sua. É com elas - personificação da sororidade - que Alana nos traz uma crítica social, política e cultural super atual, mostrando-nos uma promessa de libertação identitária que ficara por cumprir no processo de transição democrática, especialmente entre aqueles/as marcados/as por contextos de pobreza e marginalização social.

São também inúmeras as referências da cultura pop e do cinema que Alana nos oferece, presenteando-nos no final deste livro com uma deliciosa playlist do Spotify que pode e deve acompanhar a leitura.

Maus Hábitos é uma obra repleta de partilhas e que deve ser, pois claro, para partilhar. Uma obra poética, provocadora, desafiante que cheia de esperança e humanidade nos confirma a importância de lermos mais autores/as trans. 

 

ISBN: 9789897872365  

Editor:  Alfaguara

Páginas: 248

Publicado inicialmente no site Leituras Queer.

 

Daniel Santos Morais é mestre em Sociologia pela Universidade de Coimbra. Feminista, LGBTQIA+, activista pelos Direitos Humanos. Partilha a sua vida entre Coimbra e Viseu. É administrador do site Leituras Queer