"Na Terra dos Outros" de Manuel Abrantes
«Chamava-se Maria do Carmo Gouveia. Era pequena, mesmo para os onze anos que contava de idade. Tinha um corpo delgado, braços mais rápidos que fortes. Os olhos muito escuros, quase pretos, vigiavam as imediações com uma demora que havia quem tomasse por insolência. a mãe afiançava que insolente ela não era, pelo contrário, tratava-se de uma rapariga lesta e obediente, aprende rápido, aliás já sabe cuidar de uma casa melhor que muitas mulheres feitas. Maria do Carmo duvidava das suas próprias aptidões. Se ouvia aludir ao futuro, limitava-se a assentir com a cabeça. Os planos apenas se tinham tornado claros quando a mãe lhe anunciara a data da partida, estavam as duas a lavar roupa na cozinha. Então Maria do Carmo zangara-se. Gritara que não iria. Gritara que não lhe tinham perguntado nada e que, caso lhe tivessem perguntado, ela teria dito que não, nem morta, muito menos com a Dona Benedita, uma velha horrível que ela vira duas ou três vezes. com a fúria arremessara o coto de sabão que segurava. a mãe bradara que não queria conversas e Carmo que apanhasse o sabão ou aquilo acabava mal.»
Na Terra dos Outros é o primeiro romance de Manuel Abrantes, sociólogo dedicado à investigação no campo da sociologia do trabalho, das desigualdades e com especial incidência no serviço doméstico. Nesta obra, recém-editada pela Companhia das Letras (2024), traz-nos a história de uma rapariga de aldeia que vai para a capital como criada de servir, um diário involuntário daqueles e aquelas que permaneceram e permanecem na invisibilidade do trabalho dos cuidados e serviço doméstico, as criadas para todo o serviço.
Nela encontramos Maria do Carmo, uma de milhares de raparigas que durante o período do Estado Novo deixaram a família e o quotidiano severo no campo e abalaram para as cidades, sozinhas, em busca de um futuro melhor. Maria do Carmo é retrato da precariedade laboral, da violência patriarcal, daquelas que nascendo em meios rurais desfavorecidos, deslocando-se para a capital lisboeta, encontravam não um futuro promissor imaginado mas somente cama (dura) e comida (escassa), sem folgas, férias ou licença para sair, realidade que permaneceria Abril portas dentro e que lentamente permitiria Carmo reinventar os seus dias num período pós-revolução.
Um livro que nos mostra a dura realidade das criadas de serviço nos últimos anos do Estado Novo rumo a um Portugal livre e democrático. A história de uma vida que se cruza com a história de um país em formação: planos adiados, desígnios perdidos, ilusões desfeitas.
As questões de orientação sexual ou identidade de género não são centrais neste romance. "Muitas pessoas têm comentado que o livro diz algo importante sobre as relações de género, o poder do patriarcado, as desigualdades passadas e contemporâneas e, em particular, o silenciamento das mulheres da classe trabalhadora. Tudo isso eu reconheço no livro. Em contrapartida, a orientação sexual só aparece explicitamente em pontos muito esporádicos" ... "Isto pode suscitar reflexões interessantes, mas é algo muito tangencial quando olhas para o livro no seu todo" comenta Manuel Abrantes ao dezanove.pt.
Como leitura paralela, para quem se interesse no tema, sugiro o livro O Tempo das Criadas: A Condição Servil em Portugal (1940-1970), de Inês Brasão. Uma obra que recupera memórias de dominação e de resistência a partir das histórias de vida de dezenas de mulheres que em tempos trabalharam como «criadas para todo o serviço».
Votos de boas leituras!
Daniel Santos Morais é mestre em Sociologia pela Universidade de Coimbra. Feminista, LGBTQIA+, activista pelos Direitos Humanos. Partilha a sua vida entre Coimbra e Viseu. É administrador do site Leituras Queer.