«Não contes à avó»
Já saíste do armário, mas há quem goste de te empurrar lá para dentro, por mais que não seja para ir ao casamento do primo, sem chamar as atenções? Está aberta a época dos eventos familiares.
Quando uma mulher se vê como lésbica e faz escolhas que lhe permitam estar bem consigo própria, tal como falar sobre o assunto com a sua família, pode vir a sentir que vive num permanente estado de guerra fria.
As famílias têm diferentes histórias e características, por isso vamos dando a resposta que melhor se adequa, gerindo eventuais relações românticas, os nossos próprios receios e os laços familiares que queremos preservar.
O momento que escolhemos para assumirmos a nossa homossexualidade pode ter acontecido décadas antes, ou não, o que normalmente está ligado ao nosso autoconhecimento e percurso pessoal. Nessa ocasião ouvimos, imensas vezes: «tudo bem, mas não contes à avó.» As razões que motivam este pedido são diversas, embora me assuste pensar que tantas e tantas vezes se prendam com pensamentos como: «a tua avó não tem que ser sujeita a isto». Costumo questionar-me sobre o que «isto» quererá dizer, pois é como se procurassem ocultar uma perversidade, algo tão sujo ao ponto de termos de escondê-lo, porque a avó terá vergonha de nós e poderá morrer de desgosto.
Por outro lado, existem muitos relatos de avós que consolaram e acolheram os netos e netas, após terem sido abandonados, física e emocionalmente, pelos seus progenitores. Ora, as avós já viveram muitos anos e tendem a observar-nos cuidadosamente, suspeitando quando escondemos algo e que o facto de o fazermos é um exercício muito penoso para nós. Já tive a oportunidade de ouvir relatos de amigas que diziam que a avó ia puxando certas conversas, procurando facilitar o caminho da neta, que evitava o assunto por temer desiludir a avó, ao passo que a mãe e os irmãos insistiam para que nada dissesse.
Actualmente, gosto cada vez menos da palavra «tolerância», porque é como se nos tivessem traçado uma linha que nos obriga a permanecer numa zona delimitada para «homossexuais assumidas» – como se me autorizassem a dizer em voz alta que sou lésbica, mas apenas se estiver num jantar com pessoas que façam parte do meu círculo mais íntimo; não posso referir que tive ou que tenho uma namorada, se estiver na presença de amigos da família; se sou convidada para um casamento, é-me permitido levar companhia, desde que se trate de uma mulher sem piercings, sem tatuagens (características que podem ser associadas a uma mulher lésbica), que vista uma saia e use maquilhagem (para não parecer machona), ainda assim, convém que pensem que é uma amiga e por isso terei de deixar as minhas mãos constantemente pousadas, educadamente, no meu colo. Por vezes, é como se a nossa família nos obrigasse a assinar um contrato subentendido e politicamente correto:
– Pronto, filha, és lésbica, já sabemos isso, mas agora vamos agir como se nada tivesse acontecido.
Por vezes, é como se a nossa família nos obrigasse a assinar um contrato subentendido e politicamente correto:
– Pronto, filha, és lésbica, já sabemos isso, mas agora vamos agir como se nada tivesse acontecido.
Gostaria de não ter que dar tanta importância a estas coisas, de poder viver a minha vida o mais descontraidamente possível, sem ter de repensar mil vezes as minhas palavras e as minhas posturas, com o receio de parecer demasiado «fufa» ou demasiado «reivindicativa». O que queremos é sentir que pais e mães se alegram em conhecer a namorada da filha, tanto como quando são apresentadas às namoradas dos filhos rapazes; que não digam que temos de usar vestidos para melhorar a nossa aparência, tenha isso algo a ver com a nossa orientação sexual, ou não; que falem de nós com orgulho, sem manifestar aquele desabafo inaudível que nos faz desejar ser diferentes, como se dissessem: «quem me dera que fosses normal».
O que queremos é sentir que pais e mães se alegram em conhecer a namorada da filha, tanto como quando são apresentadas às namoradas dos filhos rapazes...
O facto de estarmos mais dentro ou fora do armário, em particular no que diz respeito à nossa família, acaba por causar alguma instabilidade num namoro recente, podendo transformar uma primavera numa tempestade de inverno. As pessoas são todas diferentes, contudo, creio que poucas gostarão de representar um papel forçado, de serem obrigadas a fingir que não se sentem magoadas por receberem um tratamento menos afectivo e por não poderem falar dos seus receios com o pai ou com a mãe, porque a sua relação romântica (tenha os contornos que tiver) é menos aceite e, por conseguinte, de uma categoria inferior. Na verdade, as minhas avós perguntam-me muitas vezes pela minha «Maria», desejando estabilidade e bisnetos.
Márcia Lima Soares