Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Dezanove
A Saber

Em Portugal e no Mundo

A Fazer

Boas ideias para dentro e fora de casa

A Cuidar

As melhores dicas para uma vida ‘cool’ e saudável

A Ver

As imagens e os vídeos do momento

Praia 19

Nem na mata se encontram histórias assim

O copo partido 

banner opiniao_pp.png

Hoje partiste-me um copo. Não gosto de copos partidos. Os copos existem inteiros. É assim que se diz. É assim que tem de ser. Estou sentado. Estou sentado à mesa. Olho o copo. Está partido. Hoje partiste-me um copo. Um copo quebrado é um copo enfermo. Posso curá-lo, mas jamais será inteiro. Quero salvá-lo. Vou salvá-lo. Salvo-o. Guardados num saco, os cacos despedaçados são depositados na mesa. Estou sentado. Na mesa está o copo, os cacos e a cola. A operação principia. Luvas brancas. De luvas brancas, as mãos são duas pinças que operam meticulosamente esta cirurgia. O sangue. O sangue escorre-me das mãos. 

Colo os cacos. Colo a racha que estalou sem partir. É importante não deixar nenhum buraco. Não deixar nenhuma falha. Não se falha. Não se pode falhar. Cada fenda é uma imperfeição que permanecerá para sempre no meu coração. Cada lasca será o bloqueio entre veias e artérias. Sem sangue um copo não sobrevive. Cada defeito parece ser impossível de preencher. Deixo cair algumas vezes alguns dos cacos. Volto a tentar. Não se desiste. Não se pode desistir. Desistir não é um verbo a conjugar. A cola não cola, que me cola os dedos. Uma lágrima. Uma lágrima escorre-me das mãos. 

A operação termina. O copo está colado. Estou sentado. Estou sentado à mesa. Olho-o. Olho um vidro remendado. Olho um vidro remendado com inúmeras estradas desenhadas por cola. Não é um copo. É um mapa esquecido que já ninguém usa para viajar. 

Hoje partiste-me um copo. Traíste-me. Não quero dizer estas palavras. Mas tu traíste-me. As palavras arranham-me a garganta. Mas traíste-me. Tu traíste-me. Cada vidro espeta-se no meu peito. Estou arranhado. Estou estalado. O copo partido foi cravado no meu miocárdio. Grito. Não respiro. Não se pode respirar. A dor sufoca-me a alma. Deixas-me com um copo partido nas mãos. As mãos de sangue. As mãos de lágrimas. E agora? 

Olho o copo. Vejo todas as falhas coladas. Vejo os caminhos de cola. Posso fingir que não vejo os remendos. Mas vejo-os. Posso fingir que não me incomoda. Mas incomoda. Não se bebe de um copo partido. A qualquer hora, a qualquer momento, deixará escorrer a água. A qualquer hora, a qualquer momento, poderá estalar. Um copo partido não tem força. Um copo partido não é um copo. Um copo partido é um copo partido. Como o meu coração. Cada falha é testemunha das ranhuras da tua traição. 

Um copo partido é um copo sem solução. Um copo partido é um encaixe de remendos impossíveis de serem encaixados. Por mais que os tente encaixar na minha cabeça, partiu. Morreu. Como é que se confia num copo partido? Como é que se confia que não o voltarás a partir? Magoaste-me. Tu Magoaste-me.

Posso colocá-lo num armário, sem lhe tocar. Olhá-lo apenas. Acomodar-me a ele. Deixá-lo ganhar pó. Vê-lo envelhecer todos os dias. Um dia, serão apenas restos partidos, daquilo que foi o nosso copo. O amor é um copo. O meu está partido. Não se confia num copo partido. Não se pode confiar. 

É mais fácil procurar um novo, comprar um novo. Existem outros copos por todo o lado. Mas não quero usar outro copo. Este é meu. Este é o meu copo. O nosso copo. Vê-lo no lixo e substituí-lo é desistir, é desperdiçar a nossa história. Mas tenho a boca seca. Tenho o coração seco. Receio nunca mais poder beber. 

Guardo-o. Não sei desfazer-me dele. Traíste-me. Tu traíste-me. Não te sei deitar fora. Olho os teus olhos. Procuro em ti a promessa. Procuro em ti a verdade. Quero acreditar nesses olhos. Quero acreditar. Tenho medo de morrer de sede.

 

Peter Pina