«Eu escrevo para aqueles que não me podem ler. Os de baixo, os que esperam há séculos na fila da história, os que não sabem ler ou não têm como.» – Eduardo Galeano, O Livro dos Abraços (Antígona, 2017)
Eduardo Galeano (1940-2015), o escritor que do seu microcosmo escrevia para a humanidade, escutando e retratando os quotidianos daqueles que tendo voz não eram escutados: os pobres, as mulheres, os negros, os indígenas, os afugentados pela polícia, os esquecidos pela cultura, ele próprio, Galeano, perseguido pela repressão da ditadura militar do Uruguai em 1973, trouxe-nos em O Livro dos Abraços (1989) um retrato desses tempos em que se vira foragido do Uruguai e Argentina em socorro dos terrorismo de Estado dos governos totalitários latino-americanos.
Como já devem ter concluído este não é um livro de temática Queer. Porém, um livro que versando sobre a memória da subalternidade, da defesa da libertação dos povos por um mundo mais justo, em paz, é um livro que merece ser lido. E merece ser lido não só por estas razões mas por outras tantas mais. Galeano é conhecido pela sua arte escrita, uma escrita que em si mostra transgredir não só pelo conteúdo marcadamente de esquerda mas também na forma. Rompendo com o tradicional género literário, Galeano oferece nas suas obras a conjugação de vários géneros e/ou categorias literárias, misturando a poesia, a história, o conto, crónicas e relatos pessoais, as peças textuais de Galeano são de uma riqueza única.
Exemplo disso é Livro dos Abraços (1989), uma das suas obras mais premiadas que entre vários contos, poemas, conversas com artistas, músicos, poetas, nos partilha a sua experiência de artista exilado, do regresso à sua cidade natal uma década depois, provocando-nos a reflexão sobre questões várias como a guerra e a paz; a fome e a pobreza; a coragem e a beleza; o amor e a solidão. Tudo isto num entrecruzar de ironia e humor fazendo do livro uma leitura fácil e veloz, para diferentes ocasiões e estados de espírito.
Entre a série de contos e poesia que Galeano nos brinda neste livro que é um abraço, destaco:
1
A CULTURA DO TERROR II
A extorsão,
o insulto,
a ameaça,
o carolo,
a bofetada,
a sova,
o chicote,
o quarto escuro,
o duche gelado,
o jejum obrigatório,
a comida obrigatória,
a proibição de sair,
a proibição de dizer o que se pensa,
a proibição de fazer o que se sente
e a humilhação pública
são alguns dos métodos de penitência e tortura tradicionais na vida familiar. Para castigo da desobediência e desengano da liberdade, a tradição familiar perpetua uma cultura do terror que humilha a mulher, ensina os filhos a mentir e contagia a peste do medo.
⁃ Os direitos humanos teriam de começar por casa comenta-me, no Chile, Andrés Domínguez.
E ainda, num registo mais sedutor:
A FESTA
O sol estava ameno, o ar, limpo, e o céu, sem nuvens. Enterrada na areia, a panela de barro fumegava. No caminho do mar à boca, os camarões passavam pelas mãos de Zé Fernando, mestre-de-cerimónias, que os banhava em água benta de sal, cebolas e alho. Havia bom vinho. Sentados num círculo, partilhávamos o vinho, os camarões e o mar que se abria, livre e luminoso, aos nossos pés.
Enquanto isso acontecia, essa alegria estava já a ser recordada pela memória e sonhada pelo sonho.
Ela não acabaria nunca, e nós também não, porque todos somos mortais até ao primeiro beijo e ao segundo copo, e isso qualquer um sabe, por pouco que saiba.
ISBN: 9789726083177
Editor: Antígona
Páginas: 288
Tradução: Helena Pitta
Daniel Santos Morais é mestre em Sociologia pela Universidade de Coimbra. Feminista, LGBTQIA+, activista pelos Direitos Humanos. Partilha a sua vida entre Coimbra e Viseu. É administrador do site Leituras Queer.