opinião

O meu pai está vivo apesar de ter partido faz hoje dez anos

1.

Faz hoje 10 anos que o meu pai partiu.

(parece impossível)

 

Naquele dia achei que não ia chorar.

Mas quando o Ruben Carvalho começou a falar em nome do Partido Comunista e de uma amizade de mais de 40 anos, nesse momento em que camaradas do meu pai envolveram o caixão com uma enorme foice e martelo, no momento em que fui abraçado por várias pessoas que não conhecia ou conhecia mal…

O teu pai foi um grande homem

O teu pai foi um homem de grande coragem

O teu pai é muito mais importante do que possas pensar

O teu pai nunca vergou, traiu, calou, desistiu.

Nesse momento, desmoronei.

 

2.

Faz hoje dez anos que dele me despedi.

Estava demasiado calor no Alto de São João.

O seu corpo foi cremado e as cinzas espalhadas.

E a foice o martelo voltaram para as mãos dos camaradas que bateram palmas na sua despedida, na celebração do que fora em vida.

 

3.

O meu pai morreu depois da minha mãe.

Naquele dia em que acreditava já ter gasto as lágrimas, despedi-me também, à minha maneira, de um homem por quem tenho o maior orgulho.

Disse-lho uma ou outra vez.

Não muitas, duas, no máximo três.

Recordo bem de uma conversa

“Não gostaria de ter tido um outro pai”.

E é isso que continuo a achar.

Hoje ainda mais do que ontem.

Que maravilha poder ter tido aquele pai.

E que maravilha poder dizer ao André, ao Miguel, ao Afonso e à Benedita

Olhem, este é o vosso avô.

 

4.

Resistiu à SIDA e tornou-se uma bandeira no combate contra a doença e discriminação.

Salvou jovens de desistir dos tratamentos, ofereceu o seu corpo como cobaia de novos tratamentos, resistiu a comas, toxoplasmoses, cancros, tuberculoses.

Assumiu a sua homossexualidade quando ainda era muito difícil para quem o ousasse.

Ele fê-lo.

E tornou-se um ícone do combate pela dignidade de um homem ou mulher poder escolher o seu caminho.

“Olhem, este é o vosso avô”.

Que antes de 1974 se tornou comunista.

Que organizou sessões clandestinas onde cantava canções contra o regime, que se inscreveu em Direito apenas para subverter estudantes em nome de uma ideia de liberdade e revolução.

Que nunca vacilou no PCP.

Que esteve sempre na primeira linha e na direção da Festa do Avante, mais de vinte anos a fazer dupla com o seu amigo Ruben com quem escreveu livros e projetos de futuro.

Que foi premiado postumamente pelos capitães de Abril pelo serviço à causa da liberdade.

Que gravou discos que foram premiados e ganhou a Noite do Fado.

Que desistiu de cantar por desejar fazer outras coisas, queria abraçar o mundo e estar disponível, para tudo.

Mas que cantou até ao fim em casa de fado, bairros populares ou sociedades recreativas – apenas para fazer o gosto aos que lhe pediam, mesmo quando tinha de ser amparado até à cadeira.

Que viveu vários anos em Paris.

Que dormiu um par de noites com a vossa avó, e minha mãe, talvez para que eu pudesse nascer…

… ou para que cada um dos quatro pudesse nascer.

Que foi um dos fundadores da Barraca e experimentou ser ator.

Que foi o primeiro a cantar letras de Aleixo ou a encenar a amiga Natália Correia.

Sabem uma coisa engraçada?

Quando esvaziei o seu móvel a pedido da avó Alice, vossa bisavó, a única fotografia íntima que ele guardara era da vossa avó e dos tempos que passaram em Paris.

Sim, meus filhos.

Aquele caixão, temperado com a foice e o martelo por cima, é o caixão do vosso avô.

Um homem com uma coragem física impressionante.

Sabem a história em que impediu que a casa da Amália Rodrigues fosse invadida?

O homem que um dia me informou que ia morrer no dia seguinte.

“Tenho SIDA e poucos dias de vida”.

Mas que no dia seguinte, achando que ia morrer, limpou a secretária e começou a preparar a escrita de um trabalho sobre a história do fado.

Perguntei-lhe

“Pai, o que estás a fazer?”

“Estou a começar um trabalho que me levará vinte anos a fazer”.

Não lhe fiz mais perguntas.

O vosso avô completou o trabalho.

E não morreu uns dias depois.

O vosso avô chamava-se José Manuel Osório.

 

5.

Um pai que me orgulho de ter.

O avô dos meus quatro filhos.

Morreu há dez anos.

Mas está mais vivo em mim do que alguma vez esteve.

 

Luís Osório