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“O quarto de Giovanni” obriga-nos a encarar cada (re)canto da própria identidade e o que acontece quando não se toma as rédeas da vida

o quarto de giovanni

“O quarto de Giovanni” é o segundo romance de James Baldwin, uma obra de culto e um clássico da literatura que moldou o nosso mundo, mas sobretudo o da comunidade LGBTQI+ - pela representatividade, por dar voz às lutas endémicas, à comunidade e por obrigar a encarar cada (re)canto da própria identidade e o que acontece quando não se toma as rédeas da vida.

 

O grande escritor norte-americano, nascido em 1924 na cidade de Nova Iorque, destacou-se como ensaísta, romancista, poeta, dramaturgo e como activista nomeadamente pelos direitos civis e pela libertação LGBTQI+. Em 1948, mudou-se para França para fugir à dupla opressão do racismo e da homofobia no seu país de origem, onde acabaria por falecer em 1987. 

Publicado em 1956, o seu editor aconselhou-o a queimar o manuscrito e o livro chegou a ser banido por diversas vezes, mas volvidos todos estes anos consagrou-se como uma das obras mais célebres de Baldwin.

Nesta obra, seguimos a história de amor entre David, um jovem nova-iorquino, e Giovanni, um barman italiano, em Paris onde a intensa paixão se consuma no quarto de Giovanni e onde fica confinada como metáfora para a relação e para o segredo de David – o canto que começa por ser o início do romance e um refúgio para o qual foge, acaba por ser onde a sua vergonha se esconde. Sob o seu romance paira a iminente chegada de Hella, a noiva de David, que se encontra a passar uma temporada em Espanha.

O inevitável regresso dita que David tenha de escolher entre a “normalidade” de uma vida segura, segundo um padrão heteronormativo, com Hella ou a incerteza de um futuro ao lado de Giovanni que o obriga a enfrentar e fazer as pazes com a sua identidade – a sua decisão culmina numa tragédia que jamais imaginaríamos.

Desde logo, o autor poupa-nos ao suspense e destaca-se, brilhantemente, pela sua frontalidade: nas primeiras páginas sabemos que os três personagens encontram a tragédia e, não obstante, é imperativo saber o como e o porquê.

David foge dos Estados Unidos para Paris para fugir de si próprio, ou seja, da sua sexualidade, procura reconciliar-se consigo próprio, aceitar-se e a aceitação dos outros sem perceber que para tal tem de aceitar a sua sexualidade. A narrativa reflecte os tempos conturbados para a comunidade, em que ser LGBTQI+ era, ainda, criminalizado nos Estados Unidos, facto e estigma que persegue a psique de David.

Além da história de um trágico triângulo amoroso, este romance segue os dilemas e luta interna de David, em tom confessional e acompanhando o monólogo interno do personagem, assim como a sua crise de identidade que está perpetuamente em questionamento e escrutínio perante a homofobia (também internalizada) que o atormenta, inseguranças, medos, desgostos e, sobretudo, vergonha.

A vergonha é um dos pontos-chave desta obra. Aqui, conhecemos as suas raízes, mitos que a perpetuam, os danos que causa e o quão arbitrária é: David carrega consigo a crença de que ser queer é inerentemente vergonhoso e imoral, enquanto Giovanni é imune a estes sentimentos. O desfecho e a sua inevitabilidade acabam por sucumbir perante as limitações de David.

Sem nos darmos conta, o que parecia uma simples história de amor enche-se de ambiguidades e paradoxos, simultaneamente que vemos um personagem a ficar, gradualmente, mais dividido e com mais nuances.

Em poucas páginas, Baldwin capta a densidade e profundidade de cada personagem, quais as suas motivações, maiores segredos e receios e faz-nos empatizar com até quem não esperávamos consegui-lo. Com uma escrita sofisticadíssima e genial, um tom introspectivo e auto-reflexivo, passagens de grande beleza com metáforas extremamente vívidas e ricas em simbolismos (“sexualidade como casa”), a beleza da narrativa não se deixa nunca sucumbir perante os tons de tragédia.

Acima de tudo, e pelas palavras do próprio autor, este livro não é tanto sobre sexualidade, mas sobre “o que acontece se tens tanto medo que acabas por não conseguir amar ninguém.” 

É, também, uma exploração do desejo queer e do próprio sentido de identidade, que bem poderia ser uma indagação autobiográfica. Acompanhamos, ao longo da narrativa, David a tentar aceitar e debater-se com apenas Ser

Acaba por ser um retrato bastante íntimo, genuíno e complexo da exploração da sexualidade e da identidade de género e, como tal, um “antídoto” para a vergonha.

Esta leitura obrigatória não nos deixa fechar o livro sem reflectirmos no quão importante é conseguirmos articular a nossa identidade, nos nossos próprios termos, e encarar-nos no espelho sem fugir ao que vemos.

 

Mariana Vilhena Henriques

 

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