Do que retive do caso ridículo dos tais Livros de Actividades da Porto Editora foi a dimensão inusitada que esse magno assunto alcançou. Afinal comprovou-se queos exercícios eram de igual complexidade para os meninos e para as meninas e afinal o exemplo dado para convocar a indignação da brigada das Capazes era um exemplo insidioso e sustentado numa habilidade desonesta. Restaria a objecção, natural e óbvia, das razões para existência separada, de livros de actividades para rapazes e raparigas. Um universo binário a azul e outro a rosa a perpetuar “estereótipos de géneros”.
Mas após a pronta intervenção do Governo nesta magna questão, com imediata colocação da editora prevaricadora em sentido, o que restará agora em nome da coerência e da igualdade de género e da prevenção da perpetuação dos “estereótipos de géneros”?
Um novo Index Librorum Prohibitorum? Ou, se não quisermos talvez ir tão longe, a instituição do Exame Prévio aos livros infantis? Ou apenas a elaboração de uma lista de obras recomendadas pela Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género?
E que fazer face às grandes cadeias de brinquedos tipo Toys R Us? Conferir novos poderes à ASAE para impedir nos espaços comerciais a perpetuação dos “estereótipos de géneros”? Encerramento compulsivo das secções destinadas a brinquedos para rapazes e para raparigas?
E nas grandes cadeias de vestuário? Seguiremos o mesmo caminho?
Como é óbvio isto é uma lógica que a ser conduzida em coerência, sem cedências nem compromissos, nos conduziria ao resultado final de uma reductio ad absurdum. E lá acabaríamos todos nós no maravilhoso mundo das casa de banho não-binárias.
Ora este caso, a juntar a outros igualmente histriónicos, é uma absoluta excrescência. E um lamentável desperdício de energias cívicas e intelectuais.
E conduziu inevitavelmente à desautorização de quem promoveu isto. Desautorização pelo ridículo.
Infelizmente, desgraçadamente, alguma obsessão a roçar a histeria acerca de questões microscópicas e a incapacidade emocional de algumas pessoas bem intencionadas em distinguir o que é grave do que é marginal e entre o que é importante do que é um mero capricho de meninas burguesas e mimadas e com complexos frustracionais de culpa pelas suas vidas de privilegio, e de quem alguns membros mais visíveis da comunidade LGBT são uma espécie de idiotas úteis, poderá em breve, se a comunidade LGBT não abrir os olhos, fazer-nos alienar a ampla maioria da população moderada que nestes anos tem aprendido a acolher-nos e a alargar a todos os mesmos direitos cívicos.
Este tipo de questiúnculas faz objectivamente perder aliados e arrisca colocar todas as nossas conquistas cívicas em risco num quadro de eventual backlash provocado por um sentimento de recusa da maioria da população em alinhar em certo tipo de guerras.
Este tipo de questiúnculas faz objectivamente perder aliados e arrisca colocar todas as nossas conquistas cívicas em risco num quadro de eventual backlash provocado por um sentimento de recusa da maioria da população em alinhar em certo tipo de guerras.
A constante repetição da explosão da indignação acerca de tudo e de nada, do que importa e do que não importa, do facto e da anedota, do impactante e do insignificante, conduzirá a maioria dos activistas LGBT a um papel de uma espécie de burocratas da indignação. Essa litania vazia nada mais fará do que alienar a maioria dos moderados que connosco alinharam nas nossas conquistas.
Mas muito mais do que a auto-destruição inglória e injusta do trabalho e do legado e da vida de tantos que se empenharam na construção de uma sociedade decente o que é verdadeiramente alarmante é esta sensação de que alguns não aprenderam nada, não recordaram nada.
Ainda hoje li aqui um intelectual que muito prezo, e ao qual reconheço enorme mérito, mas que se olha um pouco a si mesmo como o Papa da comunidade LGBT, a saudar a emergência em Portugal de novas “guerras culturais” (“cultural wars”).
Como se Portugal fosse comparável aos EUA! E como se a própria experiência americana não nos ajudasse a perceber que isto não é o caminho! Basta olhar para o resultado nos USA nos últimos 50 anos: a eleição de Nixon nos anos 60 com a Maioria Silenciosa, a Revolução Conservadora de Reagan nos anos 80, os anos Bush, ou agora a reacção anti- establishment de Donald Trump.
Quando existiram progressos nos direitos cívicos, designadamente nos direitos da comunidade LGBT, apesar de todas as lutas heróicas de tantos, foram precisamente durante as presidências de Clinton e de Obama, que só foram possíveis com coligações vencedoras moderadas e ao centro.
Mais valeu um Andrew Sullivan do que milhares de Judith Butler.
Uma guerra cultural em Portugal? Só se fosse travada entre a Lapa e o Príncipe Real. Tenham juízo!
Uma guerra cultural em Portugal? Só se fosse travada entre a Lapa e o Príncipe Real. Tenham juízo!
Andar à guerra por causa de livros para crianças? Uma nova guerra ao rosa e ao azul?
Foi para isso que quisemos o direito a ter e a educar os nossos filhos? Para impor agora aos filhos dos outros obrigatoriamente novos paradigmas que eles rejeitam?
Lutamos pelo direito a ver reconhecida a nossa capacidade parental para agora impormos aos outros uma diminuição da capacidade deles?
E que tal, para variar, se nos deixássemos das tretas das Capazes desta vida?
E que tal, se desta vez, nos pudéssemos concentrar aqui em Portugal, e por agora, apenas em ser felizes? E deixar igualmente outros serem felizes?
Carlos Reis, jurista
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11 Comentários
Valter Marques
Estou a aplaudir de pé. Grande Carlos Reis. Vais ser ostracizado pela seita, mas tens a admiração das pessoas decentes.
Anónimo
Sou só eu que vejo a unhaca do Bloco de Esquerda nisto…?
NTS
É isto tudo! Tudo!
“Este tipo de questiúnculas faz objectivamente perder aliados e arrisca colocar todas as nossas conquistas cívicas em risco num quadro de eventual backlash provocado por um sentimento de recusa da maioria da população em alinhar em certo tipo de guerras.”
Escolham as lutas. por amor de deus. Guerrear por palavrinhas e cores é mais do que inútil, é prejudicial. As feministas da TV, se quiserem, que lutem contra o cor-de-rosa sozinhas. Elas que façam as figuras ridículas que quiserem. Elas, quando derem cabo do que já se conquistou, voltam para o 760 20 20 e sacam uns tostões aos reformados. Nós é que ficamos sem nada.
João Miguel Gomes Delgado
O único exagero que eu vi nesta história foi a recomendação da retirada dos livros por parte da CIG, acho que a atitude mais correcta seria uma não recomendação da utilização dos livros por estes não estarem científicamente correctos ao fazem uma descriminação em relação aos gêneros com base em estereótipos que são claramente discriminatórios, e acho grave uma editora como a Porto Editora lance este tipo de materiais “educativos” para o mercado. De resto acho muito bem que a CIG se pronuncie em questões como esta
Não acho que esta questão seija uma questão menor, muito pelo contrário, acho que questões como estas relacionadas com a educação das crianças e jovens são questões essenciais para a formação de uma sociedade mais justa e livre de descriminação.
Uma das grandes formas de acabar com as discriminações existentes na sociedade passa em grande parte pela educação não só dos jovens e crianças, mas também da sociedade em geral, sendo que esta educação deve ser isenta de qualquer tipo de preconceito, deve ser científica correta
E em primeiro lugar, neste casos, está o direito da criança/jovem em ter uma boa educação inclusiva, isenta de preconceito, e científica correta e o direito de não serem descriminados por serem quem são
Muito da descriminação que existe na sociedade comessa exatamente nas idades mais jovens, onde estes lhe são impostos um número sem fim de ideias erradas e com preconceitos, e nestas idades tambem que muitos jovens comessem a sentir descriminação, com todo o sofrimento que isto lhes tras,por não corresponder aos padrões impostos pela sociedade, sendo que estas situações nunca poderam concideradas questões secundárias, sendo e isto combate-se essêncialmente com uma educação de qualidade e sem preconceitos
M. Oliveira
O porquê do assunto ser relevante:
https://youtu.be/Z1Jbd4-fPOE
Anónimo
Sem querer generalizar, mas generalizando, sempre achei muito curiosa (para não dizer intrigante) a atitude dos grandes intelectuais, juristas, Papas, seja lá o que da comunidade lgbtqi portuguesa em relação à discriminação por orientação sexual, de género, etc.
Com tanto homofóbico por aí a precisar de ser zurzido (assim de repente lembro-me do João Braga, do João César das Neves e assim) nenhum grande intelectual, jurista, Papa da comunidade lgbtqi, seja lá o que for, se atreve a abrir a boca. No entanto, estas senhoras Capazes metem a pata na poça uma vez que seja (errar é humano…) e aparecem logo os grandes intelectuais, juristas, Papas da comunidade lgbtqi, seja lá o que for, a bramir que cai o Carmo e a Trindade.
As senhoras Capazes até podem ter reagido de forma exagerada e ridícula, mas, no fundo, não terão alguma razão? É que esta história dos livros de atividades diferenciadas para meninas e meninos, faz-me lembrar os tempos em que havia a coleção Biblioteca Azul (para rapazes) e Biblioteca Rosa (para meninas); em que os rapazes tinham a disciplina de Trabalhos Manuais e as raparigas a disciplina de Lavores Femininos; em que era inaudito que uma mulher sonhasse em licenciar-se em Engenharia Civil e ainda mais inaudito eu um homem tirasse um curso de Secretariado e por aí fora.
Mas pronto. Isto sou eu a falar, que não sou grande intelectual, jurista, Papa ou seja lá o que for da comunidade lgbtqi portuguesa.
Anónimo
Este é o único comentário pertinente que li aqui. Porque é que a comunidade GGGG do dezanove é tão ou mais misógina que muitos heteros?
João Miguel Gomes Delgado
Também concordo.
Pode ter havido algum exagero na sua reação, mas não deixa de terem a sua razão.
Também achei estranho não haver nenhuma tomada de posição de algumas associação LGBTIs. Éra importante que nestas situações dessem a cara e se prenuncia-sem sobre o assunto.
Isto também me fez lembrar os tempos e exemplos de segregação e descriminação que foram referidos na parte final do comentário
Anónimo
“reacção anti-establishment de Donald Trump”
O Trump, um bilionário americano abusador de mulheres e que tem o apoio do lobby do carvão, anti-establishment? Não nos faça rir.
Anónimo
Trump apresentou-se como anti-establishment e muita gente votou nele por causa disso. O próprio Bernie Sanders disse-o: https://www.theguardian.com/us-news/2016/n ov/10/bernie-sanders-donald-trump-harnes sed-anti-establishment-anger
O Carlos Reis referiu esse facto, não disse que concordava com a interpretação das pessoas. Julgo que não estava a tentar fazê-lo rir.
Anónimo
Falso. A maior parte dos apoiantes de Trump eram de classe média-alta e classe alta. Entre os eleitores com rendimentos inferiores a 50000 dólares por ano, a candidata de centro-direita Hillary Clinton obteve a maioria dos votos (53% vs 41%). Entre os grupos mais oprimidos pelo establishment, Hillary ganhou por grandes margens (88% vs 8% entre os negros, 65% vs 29% entre os latinos e asiáticos, 71% vs 24% entre a comunidade judaica, 68% vs 26% entre os eleitores sem afiliação religiosa, 78% vs 14% entre a comunidade LGBT).
Dizer que a “vitória” de Trump foi uma reacção anti-establishment é um insulto a todo o tipo de pessoas oprimidas pelo establishment: minorias étnicas e religiosas, a comunidade LGBT, etc. E Carlos Reis, que faz parte da direita LGGG, insulta a comunidade LGBT com esse tipo de afirmações, como se não bastasse a sua misoginia.