Os trejeitos da bicicleta
Se não tivesses esse teu jeito, até eras giro. Disse ela. Os calções curtos faziam avançar uma mistura de bicicletas. Estávamos no verão de 90, de uma vila desenhada, exactamente no meio do nada. O sol despe-nos o corpo e a alma. Existe uma espécie de carta escrita com tinta de felicidade e envelope de alegria. Vivíamos num tempo, com muito tempo para esperar pelo carteiro e pelas respostas.
Essa carta iluminava toda a vila. Mas sobretudo, pintava sorrisos malandros e vontades sem meta, em nós. Com 13 anos, a vida é muito maior e o início das férias é um gradeamento aberto para todas as bicicletas, de todas as formas. Se não tivesses esse teu jeito, até eras giro. Disse ela. Ela era a minha amiga. Ela era a Teresa das tranças, com quem brincava às casinhas nas escadas da escola primária. Ela ia de mão dada comigo, a correr e tropeçar, quando nos vestimos de palhaços no 6º ano. Que jeito? Perguntei. Que jeito? Os pedais da bicicleta avançaram num sorriso por descobrir. A minha bicicleta não percebeu o que é que aquilo queria dizer. Guardei-a na garagem e os meus calções de rapazinho de 13 anos, subiram até ao meu quarto. Senti-me envolvido por um triângulo de espelhos. No centro, o resto das borbulhas do meu rosto. De um lado, aquilo que creio, que até poderia vir a ser um elogio. Se do outro, não estive reflectido um jeito desconhecido. Com a sucessiva explosão de borbulhas vulcânicas na cara, desde os 10 anos, nunca tinha recebido um elogio. E o primeiro era dependente de um jeito. Um jeito ou um trejeito. O triângulo de espelhos reflectia apenas a minha natureza. Os espelhos traduzem uma verdade talvez fantasiada. Senti vontade de o partir, já que não respondia às minhas perguntas. Os meus olhos viam os outros olhos a desviarem-se. Eram os rapazes que me evitavam. Formavam grupos de vozes grossas, nos quais a minha não era bem-vinda. Espelho, espelho meu, o que é que tenho de errado, eu? Uma dessas tardes de férias de verão, a minha bicicleta ouviu risos. Risos encaracolados em forma de gargalhadas. Os risos pintaram o verão todo. Voltei a guardar a minha bicicleta na garagem. Mas desta vez, deixei-a de castigo até começarem novamente as aulas. Maricas. Disseram eles. Maricas. O grupo das vozes grossas, em pernas grossas e morenas de 15 anos, fez-me esconder a cara. Eu não sabia o que é que aquilo queria dizer. Mas seria certamente uma anedota, dado o comprimento das gargalhadas. E a anedota era eu. Se não tivesses esse teu jeito, até eras giro. Disse ela. Os calções da Teresa misturavam-se pelo grupo das vozes grossas. Ela já não era a minha amiga das casinhas ou dos palhaços. Ela era já uma espécie de mulher. E eu era uma anedota. Entre jeitos e trejeitos, percebi depois no meu espelho, que os meus braços eram aquilo que eles chamavam de femininos. Os braços e as pernas. A cabeça e as mãos. As mãos esconderam todos os calções. Tens roupa para lavar, filho? Não. Nunca mais tive calções para lavar. As pernas passaram a ser escondidas com calças, apesar do calor abafado de verão, atrás da serra. Não voltei a fazer as pazes com a bicicleta. O gravador de cassetes passou a ser o meu melhor amigo. Passámos o resto do verão, juntos, no meu quarto. O grupo das vozes grossas e a Teresa, deixaram de ver os meus jeitos e rejeitos. Vergonha. É assim que se diz. Na minha cabeça, existiam vários grupos, de toda a vila a rirem-se. Maricas. Querias tanto e afinal nunca mais andaste de bicicleta? Dói-me as pernas. A vergonha da vítima. É assim que se diz. Quando o verão terminou, os meus olhos começaram a decorar o formato de todas as pedras do chão. As mãos encontraram um refúgio nos bolsos. E as pernas tremiam, ao tentarem percorrer o percurso até ao pavilhão, onde eu tinha aulas. Não sei como, nesse verão, esse percurso duplicou de tamanho. Se não tivesses esse teu jeito, até eras giro. Disse ela. Nunca fui bonito, já que esse jeito nunca me deixou. Faz parte da minha natureza. A natureza não pede licença para crescer. Um dia vou perceber que não existe nada de errado comigo. Porque, com jeitos ou trejeitos, tal como é, a natureza cresce perfeita.
Peter Pina