Para o Natal? Menos fobia e ansiedade
Fazer parte de uma comunidade é olhar para além do umbigo e reconhecer que vivemos situações de privilégio diferentes.
Esta introdução pretende, portanto, abrir portas para um daqueles artigos que vão além da minha realidade, recorrendo a esta, ainda assim, por não me faltarem exemplos – consciente de que existirão realidades piores.
Enquanto este é the most wonderful time of the year para algumas pessoas, é também uma das épocas de maior ansiedade para pessoas consideradas não-padrão, pessoas lésbicas, bis, gays, trans, não-monogâmicas, queer… a malta arco-íris – a comunidade com tanta luz que consegue superar as de qualquer árvore.
Ainda me lembro de ir abrir as prendas das minhas namoradas, durante a adolescência, escondida no quarto. Não as tinha debaixo da árvore, para evitar as perguntas comuns que tendencialmente escalavam para questionários infindos caso fossem coisas mais carinhosas ou personalizadas.
Quando pedi, no meu Instagram, para descrevem o Natal numa palavra – direccionado a pessoas da comunidade – ansiedade foi a palavra mais repetida. É a época que pressupõe a uma união familiar, onde estão tios, tias, avós, primos e aquelas pessoas amigas que embora nos vejam todos os anos, dizem sempre qualquer coisa como: ainda me lembro quando te mudava fraldas. Durante o jantar começam os comentários sobre o peso (quando ninguém pediu opinião) e as perguntas: para quando crianças? (é o sexto Natal que a prima diz que não quer crias). Então e namorada? – perguntam ao primo de 5 anos (e nós é que temos uma agenda); ou ao primo gay, que toda a família sabe que é gay, mas que prefere ignorar e fingir que um dia vai passar. Plot twist: não é uma fase.
É uma época que pressupõe a uma união familiar e a ignorar pronomes – mesmo quando a pessoa já pediu, mesmo quando a pessoa já avisou – ou não, por medo, por pressão e por vergonha. Ela é ele, ele é ela e pessoas não-binárias são colocadas nas caixas do binarismo porque a malta não está cá para entender essas modernices. Plot twist: pessoas não-binárias sempre existiram.
Quase que escrevo em tom de sarcasmo, na tentativa falhada de colocar a fúria de lado e a tristeza a um canto. Existem pessoas que estão juntas aos anos e ainda têm que passar o Natal separadas, porque a família não aceita ou porque a família finge que aceita e usa a avó como desculpa para nos mantermos longe da nossa verdade – a avó que, vai na volta, até é menos homofóbica do que o primo que entrou agora nos trinta. Seja qual for a desculpa, a homofobia é quem mais ordena.
O Natal, além de ser uma época transformada no melhor formato capitalista, parece ser intocável. Não se pode mexer na tradição e temos de respeitar a forma como se comemora a festividade, sabem? Da mesma forma que se comemorava há um século atrás.
Em muitas casas, o que as pessoas LGBTQ+ experienciam, é uma invisibilidade tremenda, uma falta de consideração desembrulhada e uma tristeza regada com azeite e vinagre. São os amores que estão longe, são os pronomes que não interessam e são as perguntas repetidas ano após ano, na esperança que, milagrosamente, possamos corresponder um bocadinho mais às expectativas de outras pessoas.
Posso agora seguir caminho com clichés, relembrando quem passa por estas situações de que não é obrigatório se sujeitarem a esta toxicidade, independentemente dos laços de sangue – do sangue, porque laços só nos presentes e os cor-de-rosa nas cabeças dos bebés cujo “menina” foi ditado e gritado. Nada contra laços cor-de-rosa nas meninas, é só a hipocrisia het-cis que me aborrece quando nos dizem que estamos a tentar destruir os géneros – a tal agenda.
Não é simples ou fácil cortar com quem não nos respeita, requer muita coragem, independência económica e emocional e uma força monstra. Além de que, quem está mal, não somos nós – a nossa existência não deveria nunca ser desrespeitada ou anulada por capricho tradicional. Sou e somos pessoas, somos gente além de quem amamos, de como nos identificamos ou quantos e que amores temos. Os nossos valores vivem nas nossas acções e são esses os verdadeiros determinantes de quem somos. Não é porque se faz parte da comunidade arco-íris que se é, automaticamente, boa pessoa. Que me perdoem os mais sensíveis pela bomba que vou agora lançar: também não é por se ser cis-het que se é boa pessoa.
Permanecendo nos clichés – esta é a nossa vida e teremos poucas oportunidades para agarrar com unhas e dentes a nossa verdade. A segurança é o mais importante e por isso acrescento que, se estiveres num espaço violento, procures ajuda. Se a violência e o abuso não colocam em causa a tua segurança física, mas ainda assim te desequilibram emocionalmente e vêm em forma de risos e perguntas descontextualizadas que te fazem sentir o pudim escavacado onde a criança mais nova enfiou a mão toda enquanto ninguém via, que não sintas que tens que compactuar. Não tens que dar respostas politicamente correctas ou fingir seres quem não és e não, não é tão simples assim – portanto não te responsabilizes se não conseguires.
Procura uma companhia amiga, um amor, um grupo – conecta com o mundo online, se o mundo offline não te é casa ou colo e que te lembres, todos os dias, que a tua existência não é um pecado, nem está errada. O amor não é quantitativo, o amor não se pesa, não se atribui consoante o pronome ou a genitália. O amor é – assim como a nossa identidade. Sou. Somos. Continuaremos a ser independentemente dos presentes envenenados, porque nos corre glitter no sangue, mesmo quando não parece, mesmo quando este congela.
Se não houver quem te relembre este Natal, que te relembre eu: mereces amor e a tua identidade é válida e bonita.
PS: Existem experiências positivas, famílias que apoiam (amam – acho que é mais assim) e nem todas as pessoas vivem oprimidas nesta altura do ano. No entanto, essa deveria ser a norma – não existe normal, mas existe a norma – e quem me dera que a norma fosse o amor incondicional. A todas as pessoas que, como eu neste momento da minha vida, encontram nas suas casas um espaço seguro, que não nos esqueçamos de que há muita luta pela frente. Fazer parte de uma comunidade é olhar para além do umbigo e reconhecer que vivemos situações de privilégio diferentes.
Marta Guerreiro