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Nem na mata se encontram histórias assim

Porta-te como um homem

peter pina

A alegria do corpo dança-lhe na pele. No centro da sala, a luz acende-se. Suavemente o som invade a casa. É dia de ensaio. O movimento das pernas esguias atravessa o espaço. Os seus cabelos rodopiam. As saias largas e compridas esvoaçam, contaminando de contentamento, todos os espectadores.

No fim do ensaio, o Senhor Urso concordou com o Senhor Leão, bem como com todos os peluches sentados no sofá, que a actuação tinha sido um êxito. Brilhante. Dizem eles. Brilhante. Nervoso miudinho. É assim que se diz. Nervoso miudinho sente o artista, antes dos convidados entrarem. No centro do sofá sentam-se o pai e a mãe. Lá ao fundo, na poltrona está o avô. E o irmão deita-se na almofada do chão. Chorando se foi, quem um dia só me fez chorar. Com os braços em leque, por cima da cabeça, ele dança a Lambada para o seu público. As mãos seguram o pano da loiça em cima da cabeça, depois de apertarem o nó do lençol atado à cinta. São sorrisos. São palmas. O avô quer um autógrafo. 

A alegria do corpo dança-lhe na pele, mas agora às escondidas. Essas calças são demasiado justas. Diz o pai. Essa t-shirt é demasiado curta. Deixa o rapaz, ainda é uma criança. Diz a mãe. As pernas sentam-se muito juntinhas uma à outra, debaixo da mesa. A boca apenas se abre para mastigar o pequeno-almoço, preparado pela mãe. Come. Estás magro. Põe as mãos para baixo. Porta-te como um homem. Diz o pai. O pano da loiça agora mora pendurado junto ao lava-loiça. O Senhor Urso está mais velho, mas tem saudades das noites de espectáculo, no centro da sala. 

Essas calças são demasiado justas. Diz o pai. Essa t-shirt é demasiado curta. Deixa o rapaz, ainda é uma criança. Diz a mãe. [...] Põe as mãos para baixo. Porta-te como um homem. Diz o pai.

A alegria do corpo, já não lhe dança na pele. A cabeça olha para o chão. As mãos escondem-se nos bolsos das calças. Dentro do bolso, o movimento dos dedos atravessa o espaço. Os dedos rodopiam. Porque é que não podes ser mais como o teu irmão? Diz o pai. Olha para ele. Porta-se como um homem. A dança escondida dentro do bolso é censurada. Os dedos são aprisionados na mão, sem o pai saber. Deixou o sorriso no quarto. Começou a vestir-se de medo e no inverno usa um casaco de vergonha. 

A alegria deixou o corpo, esqueceu-se de como se dança na pele. Escondida na gaveta, debaixo dos livros cadernos do ano passado, as mãos encontram a cassete da Lambada. Chorando se foi, quem um dia só o fez chorar. Chorando se foi o artista com cabelo de pano da loiça. Que mal fiz eu? Pensa. Não sou o suficiente? A cabeça deseja que chorando se vá, o pai que o fez chorar. As mãos escondem numa caixa de papelão o Senhor Urso e todos os amigos da aldeia dos peluches. Guarda-os no sótão. Diz. Mas tu gostas tanto de dormir com o Senhor Urso, filho. Diz a mãe, com medo que o seu menino também desapareça dentro da caixa de papelão. Já não posso. Tenho de ser um homem. Diz a boca triste e mal desenhada, num rosto que um dia se encheu de cor. 

A tristeza do corpo contamina-lhe na pele. Porta-te como um homem. Disse ele. Porta-te como um homem. Como é que os homens se portam? Gritam com os filhos, que têm naturalmente gestos que não percebem? Colam-lhes a mão pesada na cara? Escondem-nos em castigos no quarto, quando são apanhados a dançar? Porta-te como um homem. Disse ele. Porta-te como um homem. 

Hoje o pequeno-almoço é mudo. Daqui a três meses, faço 21 anos. Já não ouço a voz do meu pai. Esqueci-me da cor dos seus olhos. Mesmo depois de ele se levantar da mesa, na cabeça ecoa, porta-te como um homem. Porta-te como um homem. As pernas esguias querem o movimento que atravessa o espaço. Quero dizer-lhe, eu sou um homem. As minhas mãos gesticulam, mas eu sou um homem. A minha voz é mais aguda, mas eu sou um homem. Gosto de rir e dançar às escondidas, mas eu sou um homem. Não sou igual ao meu irmão, mas eu sou um homem. E este homem é teu filho. Preciso de voltar a pôr o pano da loiça na cabeça para veres que ainda sou o teu filho? Sou o teu filho. 

Um dia, a alegria do corpo vai dançar-lhe na pele. No centro da sala, a luz vai acender-se. Suavemente o som vai invadir a casa. O movimento das pernas esguias vai atravessar o espaço. O corpo do pai vai abraça-lo. Queres ir comer um gelado. Dirá o pai. Depois andarão de bicicleta, enquanto se riem das pernas esguias terem caído. 

Um dia, a alegria do corpo vai dançar-me na pele. O meu pai não me vai pedir para me portar como um homem, seja lá o que isso for. O meu pai vai apenas pedir-me para me portar como um filho, porque ele irá portar-se como meu pai. 

 

Dedicado ao Diogo

Peter Pina