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Puta Feminista: Histórias de uma trabalhadora sexual de Georgina Orellano

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"Durante muito tempo, quando alguém aludia àquele que é o meu trabalho há quinze anos, fazia-o usando o eufemismo da profissão «mais antiga», mas, para mim, o que a humanidade tem de mais antigo é a condenação das mulheres, das lésbicas, das travestis, das trans e das prostitutas que bem condenadas temos sido - e continuamos a ser - nesta sociedade machista e patriarcal." Georgina Orellano, Puta Feminista (ed. Orfeu Negro, 2023)

Estigma, silêncio e invisibilidade são três substantivos que surgem no prefácio desta obra e que abrem a leitura para um tema que é, desde sempre, alvo de divisões e disputas morais. Esse prefácio, escrito por Joana Canêdo, activista pelos direitos das pessoas que usam drogas, co-criadora do MANAS-GAT, colectivo que trabalha com mulheres e pessoas não binárias que usam drogas e fazem trabalho sexual, antevê o projecto feminista de Orellano para problematizar a realidade portuguesa, dando conta de que se o 25 de Abril abriu caminho para o fim da clandestinidade, o trabalho sexual continua à margem desse trilho democrático.
De carácter autobiográfico, este livro conta-nos as histórias de Georgina Orellano, trabalhadora do sexo, activista feminista e, desde 2014, Secretária-Geral da AMMAR, o Sindicato dxs Trabalhadorxs Sexuais da Argentina. Orellano, traz-nos nesta sua primeira obra, o testemunho de uma trabalhadora do sexo que renúncia a violência institucional e a precariedade de quem exerce trabalho sexual. Entre o longo caminho da vergonha e o despertar da sua consciência política, a autora alerta para os principais desafios dx trabalhadorx sexuais, entre os quais a sua integração nos movimentos feministas cujas certas facções continuam a retirar autonomia dos corpos dissidentes, não bináries, mulheres e homens trans, das putas que também, ou sobretudo, enfrentam e resistem à violência machista e patriarcal.
Um breve parêntesis, a palavra puta é aqui reclamada enquanto sujeito político contra o estigma e perseguição patriarcal e não um insulto ou castigo de qualquer mulher que escapa à norma, tentemos dar continuidade à resignificação desta palavra tal como o fizemos com "Queer".

Acerca da relação óbvia entre o feminismo e a luta dxs trabalhadorxs sexuais, a autora conta-nos como a sua experiência nem sempre foi pacífica tendo inclusive distanciado de encontros e conversas com feministas abolicionistas e institucionalizadas - organizações feministas com apoio estatal para impulsionar determinadas políticas públicas - onde os seus discursos e posições separatistas entre "sexualidades boas e más", "sexos puros e impuros", mostravam, e continuam a mostrar, um impedimento à autodeterminação, integridade e segurança dxs trabalhadorxs sexuais.
A consciência interseccional de Orellano, entre a luta de classes, de género, raça e sexualidade, está presente do princípio ao fim desta obra e, como seria de esperar, do resultado sua própria luta e experiência feminista. Mostra como através do sindicalismo e da consciência da vulnerabilidade que xs trabalhadorxs do sexo estão sujeitxs resulta uma solidariedade e sororidade "puteril". Mediante códigos de rua, a partilha de experiências com clientes a evitar ou mesmo da protecção contra a
perseguição e suborno policial que é partilhada e legada entre si, damos conta de como mundo dxs trabalhadorxs do sexo é vivido.
É-nos oferecido neste livro um exemplo de como as lutas são interseccionais e dependem de si, devendo escutar e incluir todas as pessoas em prol do bem comum e não do sacrifício daquelas em situação de marginalidade. Entre argumentos proibicionistas que defenderem a criminalização do trabalho sexual e outros adeptos à sua regularização, percebemos que ao recusar ouvir xs trabalhadorxs sexuais, as suas experiências, necessidades e reivindicações, os feminismos de estado continuarão a perpetuar condições de insalubridade dxs trabalhadorxs sexuais, assim como um
modelo de sociedade que continua a dividir e a marginalizar quem não reflecte os tradicionais padrões morais.
Dotada de uma forte consciência política e sindical, Georiga Orellano termina o último capítulo deste livro, "CV de uma Puta", com uma provocação que não podia de deixar de partilhar e que vos apelo à reflexão:
"Do que também tenho a certeza é de que trabalhar no que quer que seja é uma merda, mas de alguma coisa temos de viver e a precariedade não pode ser o destino; nem a violência institucional e a punição, a resposta estatal ao trabalho sexual.
Vivemos num mundo onde de qualquer modo temos de nos prostituir, como diria Virginie Despentes. No sistema capitalista cada qual se prostitui como pode e eu decidi fazê-lo desta maneira.

Todxs nos prostituímos.

E vocês, quanto cobram por hora?"

Georgina Orellano, Puta Feminista (ed. Orfeu Negro, 2023)

Mordaz, esta é uma leitura que não devem perder!

 

Daniel Santos Morais é mestre em Sociologia pela Universidade de Coimbra. Feminista, LGBTQIA+, activista pelos Direitos Humanos. Partilha a sua vida entre Coimbra e Viseu. É administrador do site Leituras Queer.