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Nem na mata se encontram histórias assim

Sem História, não há memória: o dever de lembrar quem nos antecedeu

ana cristina santoss UC

Sem História, não há memória. Foi este o mote que motivou a Exposição “Recorda, Conta, Celebra – Mês da História LGBTQI+” que, pelo segundo ano consecutivo, ocupa o espaço da Biblioteca Norte | Sul do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra durante todo o mês de Fevereiro.

Nesta exposição podemos visitar livros que fazem parte do acervo histórico e cultural das vivências queer, mas também teses de doutoramento, panfletos, boletins e um conjunto de cartazes com excertos de entrevistas feitas a pessoas LGBTQI+ acima dos 60 anos a residir em Portugal. Alguns destes testemunhos dão conta dos tempos duros anteriores à descriminalização, em que a clandestinidade era o único caminho possível para quem procurava escapar à perseguição, prisão ou internamento em ala psiquiátrica. Outros testemunhos realçam aspectos que apenas se tornaram possíveis mais recentemente e que representam um forte contraste com as suas memórias de juventude: a alegria de ver jovens que exprimem o seu afecto com naturalidade, o orgulho de ter sobrevivido para chegar hoje a uma idade maior, a esperança de viver num país em que o Parlamento se tornou casa para todas as pessoas. Em comum surge este sentido de uma vida percorrida em clandestinidade, fosse esta imposta pelo peso da lei ou pelo peso da moral dominante, com tudo o que isso acarreta de dificuldade e desperdício. E, ainda assim, percebemos que estamos perante gente heroína da nossa contemporaneidade que de múltiplas formas ajudaram a construir a história da nossa democracia inclusiva e plural.  

Muitas das pessoas de maior idade com quem temos conversado ao longo dos anos realçam o 25 de Abril como a maior conquista para os direitos relacionados com diversidade sexual e de género. Quem sobreviveu primeiro aos anos da criminalização, depois à crise da sida com todo o estigma a ela associada, e finalmente chegou ao Portugal do século XXI, reconhecido internacionalmente pelo reconhecimento formal (mesmo que tardio) de um conjunto de direitos fundamentais ao bem estar, à dignidade e à cidadania íntima, recorda-se bem que nenhum destes passos teria sido imaginável se não fosse aquela dia inicial inteiro e limpo de que nos falava Sophia. Foi com a democracia que nos chegaram direitos, mas também oportunidades decorrentes da melhoria das condições de vida: maior alfabetização, mais emprego qualificado, mais Estado social, maior investimento na educação e na investigação. Foi também assim que conseguimos construir uma academia suficientemente forte e competitiva para trazer para Portugal três prémios dentro da temática LGBTQI+ no âmbito do conceituado concurso de investigação promovido pelo European Research Council, o mais recente dos quais – o projecto TRACE – se dedica em exclusivo ao tema do envelhecimento queer no Sul da Europa. 

Num tempo em que muito falamos de medidas para o envelhecimento activo, parecemos esquecer que a geração dos nossos avôs e avós é também diversa do ponto de vista da sua identidade de género e orientação sexual. Devemos tanto à geração sénior LGBTQI+, e ainda assim há tanto que lhes continua a ser negado, a começar pelo direito à urgência de contar a sua história em voz própria. Por isso, nestes 50 anos do 25 de Abril, o meu voto terá em conta as muitas portas que Abril abriu – para que ninguém ouse um dia voltar a encerrá-las. 

 

Ana Cristina Santos

Socióloga e Investigadora Principal com Habilitação, Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

Coordenadora dos projetos REMEMBER (FCT) e TRACE (ERC)

Livro mais recente: LGBTQ+ Intimacies in Southern Europe: Citizenship, Care and Choice (Palgrave, Open Access, 2022)

 

Foto:  UC | Ana Bartolomeu