"Shuggie Bain" de Douglas Stuart
Vencedor do The 2020 Booker Price, considerado um dos melhores livros de 2021 pelo British Book Awards, o primeiro romance de Douglas Stuart, obra que lhe tomara 10 anos de escrita, conta-nos ao longo de 500 velozes páginas uma história de heroísmo e de amor num meio marcado pela miséria, pelo machismo e homofobia. O retrato da infância de Shuggie Bain, na Glasgow dos anos 1980 e 1990, é uma projecção das experiências de Douglas Stuart na sua cidade natal assim como de uma infância negligenciada pelo alcoolismo da mãe e o abandono do pai.
O livro está disposto em cinco capítulos principais, cronologicamente desordenados, indicando os pontos de Glasgow por onde a narrativa decorrerá. Começamos a história pelo seu final, no futuro, é nos apresentada a figura solitária de Shuggie Bain, já adolescente a viver por conta própria numa pensão paquistanesa de South Side. Repartindo os seus dias entre o trabalho na Kilfeathers - restaurante que lhe valera um ordenado suficiente para pagar o seu minúsculo quarto -, e a escola a que faltava com regularidade, o personagem principal é descrito quer pela sua valentia entre as diferentes situações de assédio e violência com que se defronta, como pela sensibilidade e dedicação que presta à sua mãe e família.
Filho de Agnes Bain, uma mulher excêntrica que em tudo se assemelha à figura principesca de Elizabeth Taylor, e Shugg Bain, um taxista mulherengo conhecido pelas aventuras extraconjugais, Shuggie, o filho mais novo do casal, cresce entre a violência de um casamento falhado e a miséria de um bairro de mineiros na periferia de Glasgow. Entre as consequências da crise petrolífera dos anos 1970, com o aumento das taxas de desemprego, a fome, os níveis de criminalidade e violência, o consumo de álcool e drogas, as guerrilhas independentistas entre católicos e protestantes escoceses, Douglas Stuart oferece-nos um retrato realista de um país marcado pela decadência económica e política do governo de Margaret Thatcher.
A maestria da escrita de Douglas, revestida de um realismo depressivo, mas ao mesmo tempo belo, permite-nos através de Shuggie mergulhar nos anos 80 e na hostilidade até então dirigida à homossexualidade. Com apenas 7 anos, Shuggie começa a enfrentar um clima de bullying homofóbico sendo recorrentemente assombrado por insultos como “paneleirote”, “maricas”, “bicha”, “abichanado”, “bailarina”, etc. Entre a escola e o meio familiar, a sua expressão de género, sensibilidade e gosto de “brincar com coisas de menina” eram-lhe anormalmente apontados, sendo-lhe encorajado o disfarce e censura de tais jeitos.
Com apenas 7 anos, Shuggie começa a enfrentar um clima de bullying homofóbico sendo recorrentemente assombrado por insultos como “paneleirote”, “maricas”, “bicha”, “abichanado”, “bailarina”, etc.
Com a agravante dos cuidados exigidos pelos vícios da mãe, do assédio e bullying homofóbico que lhe era dirigido pelas crianças e adultos do bairro, do alheamento familiar à vulnerabilidade enfrentada pelo jovem, levariam a que Shuggie desenvolvesse uma personalidade solitária, esquiva e extramente atenta ao que se passava ao seu redor. Se a ligação afectiva entre Agnes e o pequeno Shuggie é um assunto central na obra, mostrando a complexidade do amor materno e como os papeis de parentalidade se podem inverter, a homofobia, o machismo e sexismo são outros que não são tidos por menos.
Este é um livro que, sendo ficcional não deixa de ser hiper-realista, conectando e penetrando o leitor através da sua linguagem estética e descritiva. Um livro que não terminando com um final feliz, sublinha o poder da resiliência e do amor como superação das maiores adversidades. Um livro que, sendo eminentemente político, levantando várias críticas à sociedade escocesa dos anos 80/90, coloca em evidência o grande flagelo do alcoolismo e consumo de drogas, a “normalidade” heterossexual numa sociedade marcada pela violência machista e sexual, assim como as diferentes interseções da discriminação de classe, género e sexo, que acentuam a desumanização das diferentes formas de vida. Este é um livro que não sendo perfeito, desconfortável até, nos prende do princípio ao fim, mostrando o seu enorme contributo ao universo literário LGBTQIA+.
Recomendada pelo Ler+ Plano Nacional de Leitura, esta é uma leitura para maiores de 18 anos.
Editor: Alfaguara Portugal
Ano: 2021
496 páginas, formato 150 x 233x 31 mm
ISBN 9789897842085
PVP: 23,95€
Daniel Santos Morais é mestre em Sociologia pela Universidade de Coimbra. Feminista, LGBTQIA+, activista pelos Direitos Humanos. Partilha a sua vida entre Coimbra e Viseu.