Sobre a peça "Gisberta"
Já tinha arrumado a ideia de que não ia conseguir ver "Gisberta". Fui ontem. E talvez nada aconteça por acaso.
Supostamente, sabia ao que ia. Muitos amigos viram a peça, na altura em que não consegui, quando fez temporada em Lisboa. Tinha-me arrependido fortemente de nunca ter encontrado tempo para ver, por tudo o que me tinham dito.
Sabia a história dela. Queria trabalhar sobre gente como ela. Ingressei na rede ex-aequo este ano para emprestar a minha "voz" escrita a gente como ela.
Porque me fascinam. Porque me fazem transcender. Porque os meus super-heróis/inas são estes, os das capas arco-íris, há muito, muito tempo. Porque é para el@s - é para nós - que, afinal todos os limites são relativos. E quando não nos permitirem, quando não nos entenderem, quando não nos quiserem, abrimos asas.
Admirava a Gisberta. Sabia da imensa força dramática da Rita Ribeiro - toda a gente me tinha dito "tens que a ver em drama", acreditava, só nunca tinha conseguido.
Estava preparada para um murro no estômago. O murro que a Gisberta deu durante anos de vida pela coragem de existir. Aquele que ficou e ficará em quem a lembre, a ela e a quantos de nós tivermos a mesma capa.
Não quero tornar isto pessoal. Faço imensa força para não tornar isto pessoal. Queria escrever o artigo, para o Teatral-Mente Falando. Queria dar todas as estrelas e mais algumas. E argumentar, sem colar a Gisberta à minha pele, mas não consigo. O artigo tem que esperar o meu sossego. A minha cabeça fria. Não sei quanto tempo isto vai demorar. Ainda bem, é bom sinal. "Gisberta" e a Gisberta perduram.
Queria ter falado à Rita Ribeiro - conhecemo-nos apenas de olás, nem sei se sabe que eu sou eu sempre que passa por mim. Não queria tornar nada pessoal, também. Mas um obrigada que fosse, queria ter dito. Não consegui.
Eu - a que só chora de porta fechada, ou então deixa cair a lágrima mais teimosa caladinha, a ver se passa despercebida - chorei como quem mais me conhece jura que nunca viu. Esperei acabar de aplaudir, já sem ar, já sem nada senão a Gisberta colada à pele. Tínhamo-nos escudado atrás da primeira fila, como a maioria de quem lá estava - eu não queria, queria ter ido para a frente, sentir os silêncios na pele inteira (não foi preciso).
A Rita Ribeiro saiu de cena e eu rebentei como nunca antes. Quem lá estava viu. Quem lá estava - suponho, não sei, não havia mais nada senão aquilo, não vi - ficou a olhar espantado.
Levaram-me ao colo até à cadeira-de-rodas. Não sei quanto tempo passou. Soluçava. Ainda queria ter-lhe dito obrigada. Por afinal a cadeira ser em mim uma diferença tão insignificante. Por afinal ter visto que, quando existe em nós um bocadinho dela - da Gisberta - deles, de nós, dos desta capa... Ser tanto essa (em mim) uma cruz maior do que a da cadeira - principalmente até por ser menos óbvia: a invisibilidade e a inexistência no senso-comum daquilo em que me identifico - que agora não interessa - é uma faca de dois gumes. Mas além de cruz é também um alicerce. Temos no modo de ser uma forma de fazer mundo, saiba ele não nos matar.
Queria dizer-lhe obrigada. Não consegui. Quando parei de chorar, já estava na Baixa. Não sei o que aconteceu nesse entretanto, se me terei perdido, ou encontrado um (outro) fio de mim.
Digo-lhe agora: Obrigada! Imensamente grata. E por favor não deixem isto acabar aqui. Não deixemos.
Artigo de Inês Marto sobre a peça "Gisberta". Este texto foi escrito há um ano. O espectáculo volta a ser apresentado no dia 27 de Março, na ilha Terceira, no âmbito do Festival de Teatro, promovido pelo Alpendre Grupo de Teatro