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Carlos Reis

Nasci em 1970. Tenho, portanto, já memória dos anos 80.

Eu já passei por isto antes.

Ainda me recordo da eclosão do pânico da SIDA num país atrasado que ainda só tinha dois canais de televisão a preto e branco. E lá estava também este jornal com o seu sensacionalismo sobre os “engates gay”, o “cancro dos paneleiros” (desculpem-me mas agora que o José Milhazes já disse crl em directo na televisão já me sinto mais livre para escrever palavrões) a vida secreta dos “invertidos”, etc.

Eu era um miúdo suburbano, enclausurado num mundo cinzento, refém das minhas inseguranças e muito sozinho. Era aquela solidão interior que se sente mesmo quando passamos a vida rodeados de muito, e que miúdos como eu disfarçavam como podiam no seio das tribos de adolescentes que nos calhavam em circunstância.

A adolescência pode ser um tempo cruel. Um tempo de angústias que nos roubam as melhores alegrias.

O António Variações cedo foi um ídolo. Mas “apenas” um ídolo secreto.

Ainda há uns quatro anos quando o André Murraças me convidou para escrever um texto para o seu Queerquivo - arquivo lgbt português aceitei de imediato o privilégio de escrever sobre o António Variações. Fiquei verdadeiramente extasiado com a possibilidade de poder testemunhar sobre ele, já adulto, verdadeiramente emancipado e resolvido.

Embora fingisse que gostava muito dos Dire Straits, do Bryan Adams, dos Scorpions, e do resto das bandas do Rock FM que tinha de engolir nas festas do pessoal da D. João V, na Damaia, a verdade é que eu tinha um artista Pop para mim em Portugal. E tinha também o meu ídolo secreto.

Mas um dia, num dia de calor em junho, chegou-me no quiosque ao pé de casa a notícia nos cabeçalhos dos jornais de que o António Variações tinha morrido. E fiquei logo atento aos rumores sobre a sua misteriosa doença que o matou.

Era a SIDA.

A maioria de vocês não imagina o medo íntimo e o pavor psicológico para um adolescente que era associar de imediato uma doença a uma orientação pessoal. Uma praga que nos matava em função do nosso comportamento.

Eu era apenas um miúdo com 14 anos. Com medo.

É por isso que esta história da varíola dos macacos e a forma como ela está simplisticamente a ser associada à comunidade gay me soa agora estranhamente familiar.

Pouco importa para as televisões e para os jornais que a doença atinja igualmente mulheres, com casos reportados e documentados de transmissão por via sexual heterossexual, já no estrangeiro.
Rende muito mais o pânico do perigo associado a um grupo-alvo.

O Tal & Qual voltou décadas depois. E também as suas “reportagens” sobre os engates gay.

Pouco importa que em Portugal existam bordeis famosos nas grandes cidades, que ainda exista prostituição feminina de rua à beira das estradas nacionais, crimes de lenocínio e redes de tráfico humano de mulheres para fins sexuais, praticamente à vista de todos. Mas para este jornal o que importa são os engates gay.

Já sabemos como isto vai resvalar.

Inevitavelmente alguém suficientemente grunho e com alguma visibilidade pública proclamará um dia numa rede social que os homossexuais são tão promíscuos que até fazem sexo com macacos.

A verdade é que enquanto houver ódio nós nunca estaremos seguros.

A verdade é que enquanto houver ódio nós nunca estaremos seguros.

Por isso importa não termos medo.

Defrontar e confrontar o ódio em todas as situações. Mesmo perante este título de um jornaleco. Não podemos ter medo, seja de um comentário agressivo numa caixa de comentários num jornal online. Seja na rua quando ouvimos uma ofensa. Seja em que situação for. Convém não esquecer que as palavras são o primeiro sinal. E que se não paramos e afrontamos essas palavras viradas contra nós um dia elas transformam-se já não apenas em reportagens sensacionalistas e em palavras, mas em libelos sobre doenças e sobre o mal.

Passaram quase quarenta anos depois das piadas e anedotas soezes sobre a morte do António Variações. E sobre a morte triste de tanta gente.

 

Não. Outra vez não.

Somos pessoas. Não somos macacos.

 

Carlos Reis 

 

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