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Tatiana Vieira: “A minha cirurgia foi alterada de médica para cosmética. Só pode ser feita no privado. Não devia ter de pagar para ser quem sou”

Tatiana Vieira, tem 24 anos e é natural do Funchal. Em entrevista ao dezanove, explica o processo de mudança de sexo e revela por que foi obrigada a desistir da cirurgia. “A cirurgia foi alterada de médica para cosmética, algo que só podia ser feito no privado. Como não tenho dinheiro para isso, desisti”, conta. Agora toma hormonas, sem assistência médica, para tentar alterar o seu corpo. “Eu sei que isso não se deve fazer até porque não é recomendado, mas decidi retomar às hormonas”. A reacção dos familiares e amigos, episódios de discriminação e a vida LGBT na Madeira são outros dos temas abordados.

 

dezanove: Quando é que começaste a pensar mudar de sexo?

Tatiana Vieira: Já tinha vindo a suspeitar quando era nova, mas só me deu um clique quando conheci a Bia, uma transexual, por volta dos 30 anos. Eu tinha cerca 16/17 anos. Fiz-lhe imensas perguntas sobre ela e sobre a transexualidade. Senti-me curiosa e ao mesmo tempo confusa, aproveitando toda aquela situação de a conhecer para apaziguar o meu espírito.

Quando começaste a desconfiar que o teu corpo não combinava contigo?

Foi sobretudo quando vi a minha irmã a desenvolver os peitos e quando ia à praia. Não era bem inveja, mas via a minha irmã a desenvolver-se numa mulher e isso fazia-me sentir mal comigo mesma, porque queria um corpo idêntico. É por isso que não gosto da praia, o corpo que tenho não é algo com que esteja confortável para mostrar assim.

Falaste com alguém (amigos, familiares ou conhecidos) sobre as tuas intenções de mudança, antes de te informares ou iniciares o processo?

Quando comecei a ter as certezas sobre o que sou, decidi falar com dois amigos, com os quais sentia total confiança e liberdade para abrir-me sobre o assunto, mas demorei a iniciar essa conversa por me sentir envergonhada e com receio. Não sabia qual seria a sua reacção. Honestamente, nem me lembro como começou a conversa, acho que comecei por dizer que tinha algo sério para falar com eles, porque na altura tinha uma personalidade mais bem-disposta e menos séria. Depois contei-lhes, dizendo que era algo que estava a considerar. Antes disso, brincava com o assunto com uma amiga que fazia piadas do género “vou mudar para homem e tu para mulher” e eu respondia “bora! Vamos a isso”. Aproveitava a brincadeira para dizer a minha verdade, mas nunca admitia que era mais que uma brincadeira…

E quais foram as reacções?

Foram diferentes. Essa minha amiga ficou um pouco de boca aberta, já me conhecia há mais tempo. Aceitou, sim, mas achou que estava a brincar. O meu amigo, o Summy (também conhecido por Alecia), por outro lado, teve uma reacção mais normal. Não ficou nem chocado nem rejeitou, apenas aceitou, como se lhe tivesse dito “lembras-te do dia de ontem?”, como se fosse a coisa mais normal do mundo.

Quais os processos que já passaste para mudar de sexo?

Comecei por ir ao Centro de Saúde da minha zona e a ter consultas de psicologia. Antes de passar para o passo mais importante, temos de ter dois anos de consultas de psicologia e consultas de psiquiatria, que é para ver se estamos malucas ou não. Recomendam que comecemos a vestir e a apresentarmo-nos como o sexo com que nos identificamos por, pelo menos, três anos antes da operação. Eu comecei logo a viver como mulher na segunda consulta de psiquiatria. Tive os dois anos de psicologia, mas, depois, só duas consultas de psiquiatria. Algum tempo depois da psicologia, a enfermeira que acompanhava o meu caso encaminhou-me para um médico do Centro de Saúde, que conversou comigo e aí reencaminhou-me para a psiquiatria no Hospital Central. No estrangeiro é tudo no mesmo sítio, mas aqui é em lugares separados. Entrei numa consulta como era, e, na outra, entrei como sou.

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O que aconteceu entretanto?

Só tive duas consultas de psiquiatria porque fui obrigada a desistir, porque a cirurgia foi alterada de médica para cosmética, algo que só podia ser feito no privado. Como não tenho dinheiro para isso, desisti por enquanto do processo, com esperanças de retomar futuramente, caso isso seja revertido ou caso saia do país.

Então o processo foi interrompido…

Ainda não concluí o processo. Ainda nem mudei legalmente de nome! Outra coisa que segundo eu sei, é que aqui em Portugal dão-te uma lista dos nomes que podemos escolher, que não são nem femininos nem masculinos. Eu sei o meu nome mas ele não está nessa lista. Às vezes perguntam-me como escolhi o meu nome ou porquê Tatiana e não sei como responder. É algo que não consigo pôr em palavras, é apenas algo que sei. Não sei como melhor explicar, fico até constrangida. Por agora, estou a tomar sem assistência médica hormonas, para tentar alterar o meu corpo. Eu sei que isso não se deve fazer até porque não é recomendado, mas decidi retomar às hormonas, algo que já tomava quando andava ainda na psicologia e que me deram um pouco de ancas.

E se as hormonas correram mal?

Se correr mal, que é uma possibilidade, como deformar o meu corpo ou reacção química adversa, vou arcar com as consequências como muitas de nós, transexuais. Tomo uma medicação hormonal que me foi recomendada por uma outra transexual que conheço.

Entretanto, qual foi a reacção dos teus familiares e amigos a todo este processo?

“Desprezo, rua!” Estou a brincar, mas tive medo que isso acontecesse… A minha família, no começo, tinha vergonha de mim, de sair comigo ou serem vistos comigo. Sentia-me excluída. Mas com o passar do tempo, foram aceitando um pouco mais. O meu pai demorou mais a aceitar mas também a minha família toda teve alguns problemas. Agora já faz parte da sua realidade, porque é a minha. Sobre os amigos, orgulho-me de dizer que a maioria aceitou-me, tirando uma grande amiga minha e a sua família que me excluíram da sua vida. Acho que quem mais me apoiou na minha decisão foi o Summy. Foi ele quem me levou ao meu primeiro corte de cabelo e ajudou-me com roupa. Ele chegou a montar um espectáculo de drag para me ajudar a confirmar se era mesmo o que queria. Não correu bem para mim, mas ele agora é a Alecia Fluffy! Não foi só falar, ele esteve do meu lado, isso é importante.

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Qual foi a pessoa que mais te magoou por não te aceitar?

Essa tal suposta melhor amiga da escola. Estava já à espera de más reações, por isso nenhuma me magoou por demais. Houve quem pudesse ter tido uma reacção melhor, mas estava à espera de bem pior.

Podes apontar alguns episódios de discriminação que passaste?

Numa discoteca, era ao sabor da maré. Ora consideravam-me mulher, ora não, e, sendo sempre a mesma, isso confundia-me. Depois eram certos episódios em cafés que certos empregados eram menos que cordiais, digamos assim. E claro, algumas bocas na rua de desconhecidos.

A discriminação era pior antes ou depois de começares a viver como mulher?

Acho que era pior antes. Passo a minha vida com receio de voltar a passar por isso, mas agora, parece que passo despercebida. Já não sou um rapazito que se comporta como uma mulher, mas sim uma mulher que se comporta como uma mulher. Há ainda certos olhares e bocas, mas menos que antes. Normalmente, agora, pensam que sou lésbica, isso é o que ouço mais! Fazem comentários e chamam-me nomes homofóbicos sobre isso, mais que outra coisa. Mas antes isso que outra coisa! Posso ser vista como lésbica, mas pelo menos sou vista como mulher!

Qual é a tua orientação sexual?

Gosto de homens. Sou uma mulher heterossexual, apenas nasci no corpo errado.

Na tua opinião, o que faz falta a Portugal no que respeita à igualdade para pessoas LGBT? E, em particular para os transexuais?

Mais união? Não sei. Menos discriminação, que ainda há muita, da parte dos que não entendem. Para transexuais em particular, devia haver mais apoio. Não devia ter de pagar para ser quem sou. Também faz falta pelo menos um espaço LGBT aqui na Madeira. Não há nenhum agora que seja dedicado à nossa comunidade.

 

Marta Santos

12 Comentários

  • Patrícia Mendes

    Que eu saiba, não existem equipas multidisciplinares em Portugal insolar que possam fazer uma avaliação correta desta situação.

    Lamento que a Tatiana não tenha o apoio que nós temos
    no continente.

    Se a cirurgia foi considerada “estética”, é prova da ignorância das pessoas que estão a “tomar conta” dela.

    Mais… Se nunca lhe foi prescrita uma terapia hormonal, é obvio que andam a gozar com ela.
    Uma terapia hormonal não consiste na toma de hormonas e anti androgénios. Trata-se de uma medicação específica e estritamente pessoal, composta por fármacos cuja toma e dosagem deve ser calculada em função da idade, peso e fatores de risco.

    Penso que a Tatiana deve ter noção de que (p.ex) a medicação que eu faço não é a mesma que ela deve fazer e vice-versa. Logo, a automedicação poderá originar problemas cardíacos, hepáticos e renais que além da possibilidade de lhe causar uma morte lenta, comprometerão uma efetiva terapia hormonal.

    Eu sempre disse e digo; não arrisques meter no teu corpo aquilo que não sabes se te fará mal…

    Será que a Tatiana e os médicos que a acompanham sabem se o que estão a fazer é o indicado?

  • DOC

    Não sou insensível ao problema da Tatiana e de homens e mulheres com transtorno da identidade de género, no entanto, há várias questões que se colocam e para os profissionais de saúde alterarem o diagnostico, é porque têm duvidas…
    Por outro lado, qual a carreira contributiva para o SNS, de uma pessoa com 24 anos? Já agora, trabalha e desconta?
    Quem reclama a gratuitidade deste tipo de intervenção, tem noção de quanto custa aos contribuintes e da quantidade de doenças crónicas, intervenções cirúrgicas e medicamentos com comparticipação zero?
    O Xtandi, por exemplo, é milagroso no cancro da próstata e nem sequer é comparticipado. Há meses, assistimos ao drama dos doentes com hepatite C, porque o novo medicamento não era comparticipado. O Prevenar, administrado aos bebés até aos dois anos para prevenir doenças como pneumonia, meningite e septicémia, até há 2 semanas não era sequer comparticipado, passando a sê-lo só para os mais carenciados.
    A ruptura do SNS é evidente e não há dinheiro para acudir a tudo.
    Se fosse gestor do sistema e me colocassem entre a espada e a parede entre o Prevenar ou o Xtandi e as cirurgias de Reconstrução Génito­Urinária e Sexual, optava pelos dois primeiros, sem pestanejar.
    Por outro lado, a quantidade de ‘doentes’ que chumba na psicologia e psiquiatria, não é dispicienda, porque a fronteira para o fetiche, é ténue.

  • Patrícia Mendes

    DOC:

    Você é mais uma pessoa ignorante que não sabendo nada sobre transexualidade vem para aqui dizer asneiras…

    Sobre a questão do SNS:
    Nós pagamos consultas, medicamentos e exames.
    O dinheiro que você diz ser erradamente gasto pelos cofres do estado para as cirurgias em pessoas transexuais, é o mesmo que trata fumadores com cancro do pulmão e a alcoólicos com hepatite…

  • Junos

    Pessoas trans que não podem fazer a transformação que desejam têm uma taxa de suicídio de 40%. Esta baixa para 20% quando a fazem.
    Acho que cortar para metade o suicídio de parte da população vale a pena…

  • some yahoo

    A historia n parece mto bem contada…
    “A cirurgia foi alterada de médica para cosmética, algo que só podia ser feito no privado. Como não tenho dinheiro para isso, desisti””
    As cirurgias continuam a ser comparticipadas pelo SNS, isto n e possivel. A menos que a avaliacao tenha concluido que n e um caso de transexualidade (o que e muito, muito raro, so acontece em situacoes limite), e por isso sem “direito” a cirurgias no SNS. Mas mm no privado n se fazem cirurgias sem avaliaçao e acompanhamento devidos.

    “Posso ser vista como lésbica, mas pelo menos sou vista como mulher!”
    Hum??? com respeito, mas o aspecto e completamente masculino. se esta a fazer terapia hormonal, n se nota! Isto e dizer que as mulheres lesbicas tem aspecto BIOLOGICO indistinguivel do de um homem??
    So as roupas sao “femininas”, mas assim tao “femininas” que nenhuma mulher usa iguais. Sera que n podera ser um caso de travestismo fetichista em vez de transexualidade?

    “mas agora, parece que passo despercebida.”
    Humm… ok!

    “Já não sou um rapazito que se comporta como uma mulher, mas sim uma mulher que se comporta como uma mulher”
    O que e comportar-se como mulher?… 🙂

    “Por agora, estou a tomar sem assistência médica hormonas, para tentar alterar o meu corpo.”
    Isto NUNCA deve ser feito, pessimo exemplo (se for sequer o caso!!). Existem muitos, muitos casos de pessoas devidamente acompanhadas, que o vosso blog podia mostrar, em vez de uma situacao de entornos duvidosos. Mesmo que n seja a vossa intencao, estao a reforcar estereotipos.

  • David

    Ignorância? Por acaso a mim pareceram-me comentários bastante adequados. O SNS está falido e portanto escolhas devem ser feitas. Não se trata de dizer que estas cirurgias não façam falta ou que não sejam importantes, mas evidentemente há outras prioridades. Goste-se ou não, elegemos um governo de neo-liberais que defendem o Estado mínimo. Mínimo é mínimo, não dá para activismos. Pessoalmente, lastimo. Mas é a realidade.

  • Patrícia Mendes

    Apesar das falhas na sua escrita….

    “…com respeito, mas o aspecto e completamente masculino. se esta a fazer terapia hormonal…”

    Acha que as pessoas transexuais (neste caso m2f) ficam com um “aspeto” feminino logo após o primeiro comprimido? Sabe que a identidade de género é uma coisa que não se vê mas que se sente?

    “…So as roupas sao “femininas”, mas assim tao “femininas” que nenhuma mulher usa iguais…”

    Gostava de ver se a roupa que “você” usa, se enquadra nos meus padrões de “normalidade”…

    “…O que e comportar-se como mulher?… :-)…”
    Responda você mesmo/a…

    “…Mesmo que n seja a vossa intencao, estao a reforcar estereotipos…”
    É você que está a estereotipar…

  • Pedro

    Os comentários do(a) DOC e do(a) some yahoo, põem, e bem, o dedo nas feridas: Segurança Social, fetiche e “história muito mal contada”.

    A Patricia Mendes até podia ter razão nalguns pontos mas perde-a pela forma estúpida como defende a transexualidade e acaba por colocar mal os transexuais (pela pesquisa que fiz no Google, a Patricia é um transexual)

  • Patrícia Mendes

    Não sou “um” transexual, mas sim uma “mulher” transexual…

    Fico a aguardar que indique onde está a minha estupidez!