Transfake. Invasão de palco no Teatro São Luiz durante a peça "Tudo sobre a minha mãe". Teatro do Vão reconhece erro no casting e promete melhorar no futuro
Uma invasão de palco esta quinta-feira durante a peça "Tudo sobre a minha mãe" encenada por Daniel Gorjão levou a mesma a ser interrompida. Em causa está uma acusação de transfake à produção da peça baseada no icónico filme de Pedro Almodóvar.
A meio do espectáculo Keyla Brasil, que se assume como actriz trans e prostituta, irrompeu semi-nua pela plateia e pelo palco e exortou a André Patricío, o actor que representa a personagem trans “Lola”, que saísse do palco: “Transfake! Tenha Respeito por esse lugar. Respeito! O que está acontecendo agora é um apagamento da nossa identidade enquanto travestis. Porque não contrataram duas pessoas trans para fazer as personagens?” afirmou Keyla.
A peça está a ser levada à cena no Teatro São Luiz em Lisboa é da responsabilidade do Teatro do Vão e conta no seu elenco com nomes reconhecidos como Maria João Luís, Catarina Wallenstein ou Teresa Tavares.
Em resposta à acção de protesto protagonizada por Keyla Brasil e que surpreendeu toda a audiência presente no auditório lisboeta, a actriz Maria João Luís foi a primeira a reagir declarando: “Nós estamos aqui a fazer um espetáculo que defende a vossa luta. Eu estou pela vossa causa assim como todos nós aqui neste palco.”
Enquanto a actriz trans Gaya de Medeiros da corpo à personagem Agrado, para o papel de Lola foi contratado o actor cisgénero André Patrício. Esta última escolha já tinha feito surgir muitos comentários depreciativos e a polémica já tinha estalado nas redes sociais ao longo da semana com várias figuras da comunidade LGBTI portuguesa como o cineasta Ary Zara ou Hélder Bertólo, presidente da associação Opus Diversidades a alertar para este caso de transfake, isto é, seleccionar para o papel de uma pessoa trans uma pessoa cisgénero.
Também André Patrício respondeu “Eu entendo a tua posição. Eu estou contigo!”
Em palco Gaya de Medeiros aplaudiu a colega de profissão dizendo: "Eu quero que vocês entendam sinceramente e com generosidade de coração… Que a liberdade de uma não é a liberdade de todas. Eu sou apenas o começo. Isto aqui não está como deveria estar mas eu acho que hoje, esse acto da Keyla Brasil, uma artista que está na prostituição, entra na História de Portugal. Para que se entenda a importância desses corpos ocuparem este espaço para contar as suas histórias. Isto não é contra o ator ou contra o director, mas contra uma denúncia histórica de algo que vem acontecendo há muitos anos. É preciso ocuparmos esse lugar.”
O Teatro do Vão, responsável pela criação da versão portuguesa da peça, admitiu publicamente o erro no casting nas suas redes sociais:
"Assumindo que podíamos ter feito outra opção, que deveríamos ter feito outra opção, no que respeita à inclusão de pessoas trans em Tudo Sobre a Minha Mãe, uma vez que demos o papel de Agrado a uma mulher trans, pela primeira vez no mundo, mas não o fizemos em relação à personagem Lola. Percebemos, acreditamos e estamos solidários com a luta trans, sempre estivemos. Apesar do nosso esforço, não foi suficiente, e lamentamos.
Com este processo aprendemos e crescemos, e olharemos o futuro de forma diferente. Não somos inimigos, somo aliados, sempre disponíveis para o diálogo.”
Vê aqui o vídeo da acção do protesto:
https://youtu.be/SvLPLCr80DU
(deverás ter mais de 18 anos e uma conta conta Google)
Este espetáculo com texto de Samuel Adamson, a partir do filme homónimo de Pedro Almodóvar, estará em cena no São Luiz — Sala Luis Miguel Cintra até este Domingo, 22 de Janeiro, seguindo depois na próxima semana para o Porto, onde será apresentado no Teatro Municipal do Porto - Campo Alegre, de 27 a 29 de Janeiro.
Numa nota divulgada à imprensa prévia ao protesto desta quinta-feira, a produção afirmou que a peça pretendia "reflectir sobre a incondicionalidade da força feminina, sobre o que é ser mulher (periférica ou não, racializada ou não, cis ou transgénero). Partindo do filme de Pedro Almodóvar e da dramaturgia das mulheres que o protagonizam, o espetáculo dá palco e voz a temas como identidade de género e orientação sexual, colocando em cena intérpretes e corpos queer".
Tudo sobre a minha mãe foi adaptado para teatro por Daniel Gorjão, com tradução para português de Hugo van der Ding.
Recorde-se que a pessoa que deu cara e corpo a este protesto, Keyla Brasil, foi uma das artistas que se deparou com o desemprego com o fim do projecto Drag Taste. Também Gaya de Medeiros trabalhou no projecto liderado por Pedro Pico corria o ano de 2020.
Esta tarde Teatro São Luiz veio informar publicamente que decidiu mudar o elenco da peça. O actor André Patrício será substituído pela actriz trans Maria João Vaz.
Este Sábado o actor André Patrício veio a público reagir ao caso através das redes sociais:
"Obrigado pelo vosso apoio.
Quero dizer vos que não saí da peça, como várias pessoas escrevem ou pensam. Porque faço mais 3 personagens. (A situação teria sido bem diferente se eu tivesse ficado desempregado).
Concordo que uma minoria, agredida e maltratada, assassinada até, deve ser ajudada e apoiada pela sociedade. Sou totalmente a favor da igualdade de oportunidades, de direitos e da inclusão. Seja no trabalho em geral, não só nas artes, seja na sociedade.
Não sou a favor da violência nem da invasão de palco.
Senti-me violentado e castrado na minha arte, no meu trabalho. Também nós, trabalhadores da cultura (Cis ou Trans), somos uma minoria. Não temos as devidas e equalitarias condições de trabalho na nossa área. E lutamos para sobreviver.
A forma escolhida de protesto não foi a adequada porque me desrespeita e ao meu empenho enquanto profissional. Que é exactamente o direito pelo qual lutam. Por mais oportunidades e respeito. Fazer-se ouvir é um direito, rasgar é uma agressão.
Não é com desrespeito e injustiça que se consegue respeito e justiça.
Não concordo com o boicote a um espectáculo que por si só já era uma plataforma de visibilidade e apoio à inclusão.
A minha contratação e a minha substituição no personagem Lola são questões que me ultrapassam.
Desejo que amanhã seja um dia melhor para a comunidade Trans e que usem esta visibilidade e exposição da forma mais inteligente e sensata.
AP"
Artigo actualizado a 21 de Janeiro com a reacção do actor André Patrício.
Paulo Monteiro
Daniel Santos Morais