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Três livros da minha adolescência

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Quando publiquei “A Vila das Cores”, em finais de 2014, a comunicação social tendeu a anunciá-lo como o primeiro livro infanto-juvenil de temática LGBT editado em Portugal. Não sendo, de todo, verdade, não posso nem quero alimentar esse “mito”. Neste artigo, escrevo sobre alguns livros que li na minha adolescência e que, de forma mais directa ou mais subtil, abordam a temática da homossexualidade.

 

 

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“Poeta (Às Vezes)” – 1997

Maria Teresa Maia Gonzalez

Rafael Santa-Cruz é um estudante do ensino secundário que escreve poesia (às vezes).
Vive em Lisboa, com a mãe, de quem pouco se sabe (leva-lhe leite e bolachinhas ao quarto), o pai, muito rígido e tradicional (quer que o filho seja juiz ou “pelo menos” advogado), a avó, que manda lá em casa (provavelmente, será a dona) e o gato Pessoa.
O jovem divide o seu tempo entre as aulas, os estudos, algumas saídas, o Clube de Letras e dois ou três amigos mais próximos: Andrew, Vanessa e Ana Lúcia.
Vanessa gosta de Rafael. Rafael gosta de Ana Lúcia.
Andrew, por sua vez, ama o teatro e o seu pai – que rapidamente se percebe ser homossexual.
A discriminação e o preconceito surgem através de alguns colegas da escola, no dia em que o pai de Andrew vai a uma reunião e alguém o chama "maricas" – sendo de imediato agredido por Andrew, que aparece em defesa do pai.
Nessa tarde, Rafael pergunta pela primeira (e última) vez a Andrew:
«– Responde só se quiseres, pá. Tu és... como o teu pai?
O amigo levantou os olhos do tapete, limpou o rosto à manga da camisa e desarmou-o com a perícia que o caracterizava nesta arte:
– Porquê? Que diferença faria, Santa-Cruz?»
Algum tempo depois, um outro colega de Rafael aconselha-o a afastar-se de Andrew:
«– O pessoal começa a mandar bocas, Santa, 'tás a ver? É chato como o caraças. É que eu acho que devias escolher melhor as amizades, meu, 'tás a ver... Eu sei, toda a gente sabe, que tu és um bocado apanhado, um bocado assim a dar p'ró intelectual, mas não és... maricas e essas cenas, só que o melhor é jogar pelo seguro, pá. Afasta-te, 'tás a ver? Não digo completamente, que também é chato, mas faz um intervalo, Santa-Cruz. Só para a malta não começar com ideias furadas, 'tás a ver?»
Apesar de a sexualidade de Andrew (e de Rafael, também, de certa forma) tornar-se um pouco "difusa", certo é que, após uma discussão, os dois amigos deixam realmente de falar-se, até que Santa-Cruz decide procurá-lo em sua casa, já de madrugada. Andrew abre-lhe a porta, surpreendido com a inesperada visita, estando acompanhado por alguém do sexo feminino...
«– No problem – tranquilizou-o o amigo. – Já estávamos quase a dormir. Não interrompeste nada. Se tivesses vindo mais cedo, era mais grave…»
Com a aproximação do final do ano lectivo – e a notícia de que, mais uma vez, teria de mudar de escola e de país –, Andrew prepara-se para a apresentação de uma peça de teatro, cortando radicalmente o cabelo para melhor interpretar a personagem. Nessa noite, depois do sucesso em palco, o "inglês" segue de moto, sozinho e vestindo um fato novo, para a noite de Lisboa – cometendo suicídio sem que nada o fizesse prever.
Numa carta de despedida que deixa ao amigo, pode ler-se:
«Se insistires em procurar um nome para descreveres o que sentes por mim (caso isso continue a ser importante para ti) chama-lhe amizade, se ainda te incomodar a palavra amor.»

 

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“Diário Secreto de Camila” – 1999

Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada

Camila apaixona-se (por um rapaz) quando vai a um café comprar um gelado.
Durante os dias – ou as semanas – que se seguem, a obsessão de Camila é rever o rapaz, que julga estar em mudanças para o prédio em frente, ao ponto de comprar binóculos, para poder vigiá-lo à distância.
Apesar da aparente heteronormatividade, eis que surge uma notícia:
«Morreu o tio Luís Eugénio. Mal o conhecia e já era velhíssimo, não fiquei triste nem impressionada quando me deram a notícia. (…) Creio que só o vi duas ou três vezes lá na casa de praia de onde nunca saía e onde eu aliás detestava ir porque era escura, húmida, cheirava a mofo e estava atafulhada de mobílias horríveis. Pensando bem, ele próprio parecia uma peça de mobília. (…) [No enterro], apareceu ainda um indivíduo que aparentemente não conhecia ninguém. Era velho e esquisito, caminhava com a leveza dos bailarinos e tinha o cabelo castanho aparentemente pintado. Ou talvez fosse um capachinho.»
Dada a tristeza desproporcionada da sua avó, esta acaba por confessar a Camila:
«– A grande paixão da minha vida, ou talvez a única, foi o tio Luís Eugénio.
Eu ia morrendo! Parecia-me impossível o que estava a ouvir. Aquela carcaça horrenda com pêlos no nariz e dedos manchados de tabaco?
(…)
– Tu só o conheceste em velho, mas em novo era um bonito rapaz.
(…)
– Então por que é que não casou com ele e sim com o irmão?
– Porque o Luís Eugénio não gostava de mulheres.
– Era homossexual?
– Naquele tempo não usávamos essas palavras, de preferência até nem usávamos nenhumas. Dava-se a entender… disfarçava-se, fazia-se de conta.
– Então podiam enganar-se, ser uma ideia falsa.
– Foi a isso que me agarrei durante dois anos.»
Por essa altura, a avó de Camila descobrira, ao remexer nas coisas do tio Luís Eugénio, cartas de amor entre ele e um outro homem. Desgostosa, acabou por casar com o próprio irmão de Luís Eugénio, com quem teve uma vida “tranquila”.
Com as heranças, os testamentos, as partilhas, surge nova “polémica”:
«– Deixou tudo aos gajos! Deixou tudo aos gajos! (…) Vejam! Leiam! A casa da praia, que pertencia à nossa família, ficou para um José Branda que ninguém sabe quem é. E o recheio também. (…) E o dinheiro? Sabem para quem vai a massa que o tipo tinha no banco? Para o mesmo José Branda e para o jardineiro! Lembrou-se de vocês? Lembrou-se de mim que era sobrinho e afilhado? Não…
(…)
Já vi muitas cenas de cama nos filmes e na televisão, mas os actores são sempre novos e quase sempre bonitos. O tio Luís Eugénio com o José Branda? Inimaginável! Só de olharem um para o outro deviam morrer de susto! E o jardineiro? Recordava vagamente a figura de um homem magro, vestido com roupas velhas e botas de borracha a podar roseiras ao fundo do quintal. Seria possível que ao anoitecer largasse a tesoura, o regador, a pá e o ancinho e se precipitasse sobre o tio Luís Eugénio?»
Mais tarde, dá-se uma pequena reviravolta: José Branda aparece em casa de Camila.
«Trazia uma pasta tão velha como ele, colocou-a nos joelhos e, antes de a abrir, explicou:
(…)
– Estas coisas não foram mencionadas no testamento, portanto entendi que devia entregá-las à família.
(…)
E depois, para o assombro ser completo, apresentou-nos um saco de camurça podre de velho e sebento.
– Trouxe as jóias aqui para evitar que se riscassem.
(…)
À hora do jantar ligámos para o tio Eduardo e a minha mãe contou-lhe tudo. Ao contrário de nós as três, não ficou nada impressionado e voltou a dar mais berros que transbordavam para fora do auscultador. E então quando a minha mãe lhe disse que viesse cá a casa para dividirem o monte, foi o fim:
– Tu julgas que eu quero jóias de mulher? Passa-te pela cabeça que aceito jóias de mulher? (…) Não quero nem vê-las! As coisas de casa daquele velho metem-me nojo. Fica tu com tudo ou vende, deita fora, faz o que quiseres!»

 

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“Vagabundos de Nós” – 2003

Daniel Sampaio

Diogo (o filho) e Luísa (a mãe) trocam palavras, desfiando recordações de uma vida.
Luísa sente angústia perante a ideia de o filho “poder ser” homossexual. Para ela, é visível que o seu filho é “diferente”, desde pequeno, mas não consegue admiti-lo: E os netos? E o casamento? E os “outros”?
«Tens apenas três anos e já estou a imaginar o teu futuro, como serás como pai e eu como avó, só uma sombra me invade nessa altura, o aparente desinteresse do pai por ti, ainda bem que tudo fazes esquecer quando encostas a cabeça e quase adormeces. (…) Quando comecei a preocupar-me a sério, procurava indícios, pistas, pormenores que me tranquilizassem, cheguei a mexer nos teus papéis e gavetas, para logo me culpar, achar que tudo se iria resolver e que na realidade não eras diferente dos teus colegas, era eu que me inquietava sem razão.»
A infância de Diogo é marcada pela solidão.
«Foi a primeira vez que me senti diferente. Os meninos não brincam ao elástico, jogam futebol. Mas foi bom, nem sequer me incomodei com os risinhos das miúdas. Estive acompanhado e pronto. Como te lembras, até o dia de anos tinha corrido mal.»
Mais tarde, na adolescência, Diogo chega a namorar cum uma rapariga – uma das mais bonitas e “cobiçadas” da escola. Para ele, a relação com Cláudia é como um troféu.
«Cláudia, quando te beijei pela primeira vez foi o fim dos meus medos, senti que o mundo não ia acabar, nunca seria como o Rafael. Estava salvo.»
Na escola, há um rapaz assumidamente gay – o Rafael – que é vítima de bullying. Diogo vive angustiado com a ideia de ser “descoberto”.
«Não queria que se soubesse que podia ser eu. Um dia tudo se ia passar comigo, tive a certeza. Alguém havia de descobrir que também eu olhava para os rapazes nos balneários, os espreitava na casa de banho e os vigiava quando beijavam as raparigas.»
À noite, Diogo marca encontros na internet e tem sonhos com homens mais velhos. Ainda assim, nunca assume aquilo que é.
«No dia seguinte lá estava de novo, para me torturar por não ter sido forte e resistir. Tornei-me quase um especialista, é com horror que agora, vários anos passados, confesso aquele hábito de andar de uma casa de banho para outra, a fugir dos seguranças, a perceber como fechavam as portas, a voltar atrás para ver se alguém percebia a pista que tinha deixado, às vezes apenas para tornar a olhar. À noite, em casa, percorria sites na net, marcava encontros com homens a que não comparecia, mandava mails a desconhecidos, depois arrependia-me e prometia mudar. E no dia seguinte, lá estava de novo. (…) Se tenho sexo com homens é porque sou gay. Por que razão não me aceito, por que motivo continuo à procura de algo que não encontro? (…) Já não sou o menino do jogo de elástico nem do vestido de noiva.»
A narrativa desenrola-se com avanços e recuos: o fim-de-semana passado no Porto na casa de um “amigo”, a relação “conflituosa” com o pai e o irmão, o professor de Educação Visual que elogia os desenhos de Diogo, o instrutor de natação que o chama de “maricas”… e deixa a mulher e foge com o cantor da discoteca… Mas a cena mais marcante é sem dúvida a do vestido de noiva…
«De repente, vocês entraram. Quem poderia imaginar que viriam tão cedo? Como gritaste, mãe! Como o teu grito, ainda hoje, tantos anos passados, ecoa nos meus ouvidos! E a cara do pai, uns olhos de fúria como só tinha visto em filmes! Tentaste que ele não se aproximasse de mim, não conseguiste. A primeira bofetada deitou-me logo ao chão, um pontapé acertou-me no joelho, depois mais pancadas com a mão e com os pés, gritos.»
Finalmente, quando Diogo parece ter encontrado uma relação estável, morre tragicamente na sequência de um acidente de automóvel.

 

Em suma…
Enquanto “Poeta (Às Vezes)” deixa uma imagem positiva, realista ou até neutra do que é uma pessoa homossexual (ou LGBT, como quiserem entender), “Diário Secreto de Camila” apresenta pessoas homossexuais – todas elas homens – como velhas, feias e estranhas, e “Vagabundos de Nós” – tal como o próprio título sugere – expõe a homossexualidade envolta em “drama”, negação e promiscuidade – tudo aquilo de que insisto em afastar-me.

 

Bruno Magina, escritor

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