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Não há pessoas negras eleitas para esta que será a XVI Legislatura da III República. 

Há duas pessoas eleitas pelo Chega para fazer de ‘pessoas de cor’ e calar qualquer alegação de que 1.1 milhão de portugueses são declaradamente xenófobos e racistas. Sublinhe-se declaradamente 1.1 milhão de portugueses. Ao número há que somar os não declaradamente racistas e xenófobos, mascarados de pessoas inclusivas e solidárias, camuflados em todos os partidos que fizeram questão de, volitivamente, não incluir em lugar (claramente) elegível pessoas negras.  

Como não houve um único partido a pugnar pela declaradamente inclusão de pessoas negras – excepto, como já referi, os dois casos de apropriação para fins políticos eleitos pelo Chega – todos os partidos com representação na Assembleia da República são declaradamente e não declaradamente partidos que alimentam o racismo e a xenofobia, quando não mesmo promovem.   

Votei como se fosse a ainda deputada Romualda Fernandes “a preta”, assim identificada em 2021 numa notícia da LUSA, redacção que causou dois ou três dias de polémica e depois esfomeou-se com o costumeiro ‘podia ser pior’. O PS de Pedro Nuno Santos foi um dos partidos que fez questão de não incluir nenhuma pessoa negra em lugar elegível. 

Votei como uma mulher, primeiro, votei como uma mulher negra, segundo, votei como uma mulher negra e doente crónica utente de um SNS onde no início deste Março, mês da mulher, uma doente de 81 anos com quem provavelmente me cruzei em alguma Mesa de Voto na Escola Secundária do Restelo, onde exerço o meu direito de cidadã, foi encontrada morta, terceiro. Foi ali, a 3 minutos do local onde dou colo aos meus afectos, num terreno baldio nas traseiras de um hospital público onde o corpo, rapidamente identificável pela pulseira amarela da triagem de doentes urgentes, foi encontrado.

A notícia marcou-me. Pus-me nos sapatos dela, que também poderiam ser os meus, e, não sendo eu uma ‘idosa’ como nomeia a notícia, mas sabendo que o idadismo é também ele um preconceito cumulativo e conhecendo eu profundamente como são tratados os doentes no SNS, somei mais uma mochila de preconceito e votei como se fosse a minha vizinha. 

Acordamos e damos por nós no centro dos grandes clássicos a tentar perceber o que é que não lemos e o que é que ainda não aprendemos. De facto, Hegel já havia feito o retrato no que designou ser a necessidade metafísica do terror. Na Fenomenologia do Espírito, que agora estou, coincidentemente, a reler, Hegel desferiu sobre o surgimento e a queda das civilizações, naquela que considerou ser a tensão entre a liberdade absoluta e o terror, como se no parto de uma grande nação houvesse sempre esta fatalidade histórica do ‘vais ter de sofrer’. 

Mais tardio, o historiador Marc Ferro foi-me recomendado a ler pela professora do doutoramento em História Contemporânea Marília dos Santos Lopes. Ando aqui embrenhada numa segunda leitura só para tirar notas e confronto-me repetidamente com esta angustiante sensação de que, de facto, está tudo nos livros. O ressentimento “Fenómeno individual ou colectivo que afecta tanto grupos como nações ou comunidades inteiras, é mais difícil de apreender do que, digamos, a luta de classes ou o racismo. Entre outras razões, porque se manteve latente e pode interferir, tanto como a luta de classes e o racismo, como o nacionalismo ou outros fenómenos (…)”. E segue-se um retrato histórico de como a evolução da civilização se faz ou não através do que a história fez ou do que nós, civilização, não quisemos fazer dela. 

Tudo mau. Tudo péssimo, tudo inqualificável, tudo medonho. Seguem-se dias terríveis, desastrosos, no meio de George Orwell e dos seus porcos, a lutar na lama, a assistir àquelas 230 pessoas a repostarem-se mutuamente sem distinguirmos quem são os humanos de quem são os porcos. 

Fernando Pessoa, agoniando, clamou: “Senhor, falta cumprir-se Portugal!”. Fê-lo com a esperança de um poeta retorquindo que afinal valeu a pena, porque “Tudo vale a pena/ Se a alma não é pequena”.

Por antifonia, eis que surge André Ventura a impor o fim à esperança (outrora voz de Portugal) num encorpado ruído sem poesia. Guarda de fronteira ou alguém por quem Bartolomeu Dias abortaria a rota acaso adivinhasse que um dia um tão pouco venturoso se ouviria? Antagonista do Príncipe Perfeito ou protagonista político do fim desta república? 

Se fosse um deus André Ventura seria Tártaro, sendo resultado de um processo ideológico de otherization cavalgado pelo trumpismo - de extrema importância para compreender os discursos populistas na atual geopolítica -  o autocéfalo da unipessoal com 1.1 milhão de sócios Chega respira, agora mais do que nunca, inflamado. Viralizado por um grande reel nas redes sociais que agora se transfere para a Assembleia da República, sendo que o que se espera dos próximos quatro anos, é desejável que se cumpram legislaturas, pode bem assemelhar-se à necessidade metafísica do terror. Como acabará não sabemos. 

A História também nos diz que, adivinhou-o um general: Há na parte mais ocidental da Ibéria um povo muito estranho: não se governa e não se deixa governar.”  

Ventura, o pai da lusoescatologia. 

 

Ulika da Paixão Franco