VIH, sapere aude
Pol é o protagonista da série catalã Merlí: sapere aude, que estreou na Netflix em Setembro. Na segunda temporada, a infecção por VIH torna-se o elemento central da narrativa.
Pol estuda Filosofia na Universidade de Barcelona. É bom aluno e popular entre os colegas. Sonha ser professor. Até que um rapaz com quem certa vez tivera relações sexuais desprotegidas lhe conta que é seropositivo. Aconselha-o a testar-se. Pol hesita. Na farmácia, uma senhora de bata branca extrai-lhe uma gota de sangue. Tudo com naturalidade, é um procedimento de rotina. Mas quando surge o resultado que ela não esperava, e que Pol mais temera, pronuncia-o como uma sentença de morte iminente. Pol afunda-se. Abandona a faculdade, afasta-se dos amigos e da família. Não vê saída para uma condição que, julgava, só afectava os perdidos da vida. Ele que, pelo contrário, tem ambições e um plano de futuro. Tem 20 anos e tanta gente que lhe quer bem. Tem um corpo jovem e atraente, que ele cultiva como um templo. Mas aquele teste de plástico diz-lhe que esse corpo está doente.
Pol afunda-se. Abandona a faculdade, afasta-se dos amigos e da família. Não vê saída para uma condição que, julgava, só afectava os perdidos da vida. Ele que, pelo contrário, tem ambições e um plano de futuro. Tem 20 anos e tanta gente que lhe quer bem. Tem um corpo jovem e atraente, que ele cultiva como um templo. Mas aquele teste de plástico diz-lhe que esse corpo está doente.
Sem forçar o spoiler além do necessário, nos episódios seguintes Pol debate-se com uma dúvida: o VIH define a sua essência como pessoa? O seu corpo é doente, ou antes está, ou pode estar, doente? Dino, um homem mais velho, acolhe-o no seu bar, o Satanassa, e conta-lhe que vive com o vírus há décadas. Mas é apenas um detalhe biográfico. A emancipação de Pol começa aí. Numa cena marcante, Dino rebaptiza-o de “Apolo”, como o deus da música e da cura, e unge-o na fronte com o polegar molhado no Bloody Mary com que Pol deu provas de barman. Simbolicamente, com aquele sangue de tomate Dino lava-o espiritualmente do sangue contaminado pelo estigma. E o jovem deus pode começar uma nova vida.
O VIH define a sua essência como pessoa? O seu corpo é doente, ou antes está, ou pode estar, doente?
Depois, a aceitação dos outros, que principia sempre por um segundo coming out. A infecção não é apenas um estado de saúde mas um conjunto de referências que o mundo projecta nele: desgraça e resignação, nojo físico, e sobretudo culpa. E medo. Medo de defraudar as expectativas do pai, que se enche de orgulho por ter o filho na faculdade. E medo que Axel, por quem Pol se apaixona, o veja como doente e o rejeite.
Por ocasião de mais um Dia Mundial de Luta Contra a SIDA, fica a sugestão desta temporada de Merlí: sapere aude. Em Outubro de 1983 foi diagnosticado o primeiro caso de sida em Portugal. Quase quatro décadas depois, da televisão à literatura são ainda mais frequentes as sentenças de morte iminente do que a normalização da vida com VIH. Isto a despeito da generalização do acesso à PrEP e do desenvolvimento de tratamentos antirretrovirais que reduzem a carga viral ao indetectável, o que, segundo um largo consenso científico, torna a infecção intransmissível. E graças aos avanços na terapêutica, a qualidade de vida dos portadores de VIH é hoje muito semelhante à da restante população.
Se a doença é uma constante na história das sociedades humanas, cujos prejuízos a ciência tem sabido minimizar, os comportamentos instigados por medos ancestrais e irracionais, face ao outro e à natureza da doença, provocam ainda um dano intolerável. Não raramente, desferem maior dor e sofrimento nos que dela padecem do que os próprios sintomas físicos da sua condição médica. Disso tivemos um bom exemplo com os surtos de Monkeypox no último Verão, que suscitaram a mesma suspeição infundada sobre uma minoria, por um lado, e a mesma culpabilização puritana sobre o corpo, por outro. Paradoxalmente, quando a doença nos afecta a todos por igual, o fardo da aflição e da culpa é superado o mais rapidamente possível. Em menos de dois anos, a Covid-19 passou de praga apocalíptica a uma simples infecção sazonal. Neutralizou-se o estigma da doença e normalizou-se a conveniência com esse vírus. Quarenta anos depois, passou-se o mesmo com o VIH? Não. Porque não houve o necessário esforço de compreensão. Porqur faltou pôr em prática o lema que dá título à série, sapere aude – ousar saber.
Pol procura ter uma vida normal. Apaixonar-se. Terminar o curso e dar aulas. Podia ser ou ter sido nosso colega de faculdade. Barcelona é aqui ao lado e tudo na série nos parece familiar. Ele e os amigos têm planos para o futuro. Têm a vida toda pela frente, e essa é uma mensagem ainda rara nas representações do VIH/SIDA.
Pedro Leitão