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“A última carta a meu pai” de Peter Pina ou quando a arte imita a vida

Estou a caminho de fazer 46 anos. Por vezes, dou por mim a pensar na sorte que as gerações que vieram depois de mim tiveram, ou, pelo menos, assim o espero. Os jovens de 20 e 30 anos tiveram pais que já não cresceram num país fechado, com um enorme peso cultural nascido duma ditadura que durou 41 anos. Tiveram já acesso à Internet, a uma globalização da cultura, a uma sociedade, embora ainda renitente, mais aberta, inclusiva, acolhedora. Cresceram, e crescem, com uma série de referências à identidade queer na literatura, no cinema, nos meios de comunicação social. Alegro-me por isso, muito… 

Tive a sorte de ir à estreia da peça de teatro “A última carta a meu pai”, do Peter Pina, meu colega do site dezanove.pt e, sem querer, dei por mim a pensar nos dias de hoje e como eu vivia os dias, isto é, como vivia a minha realidade há 20 ou 30 anos. A peça, ainda que com um forte cariz autobiográfico, conta-nos a história de um rapaz (como a de tantos rapzes que cresceram nos anos 1980) que sofre apenas pelo simples facto de reclamar para si um lugar no mundo, para SER no mundo. A história de Pedro, que sofre de bullying na escola, porque não faz parte da norma, nem é igual aos outros rapazes; que, no seio da família nuclear, é obrigado a ser apenas ele, pois a mãe não faz frente ao pai; um Pedro, que poderia ser Miguel, João ou António que, no fim de contas, mais não quer que ter o amor e a aceitação do pai. Um Pedro que personifica todos os heróis mudos, que tiveram de quebrar os laços com a família e com normas sociais, para se reconstruirem e poderem ser eles próprios.

Comovi-me. Várias vezes durante a peça enxuguei os olhos. Muito mais do que a história de Pedro e do seu conflito interior com o pai e com a realidade que o rodeia, “A última carta a meu pai” é um convite à reflexão, é um revisitar de tantas histórias que ficaram no passado, é uma bofetada sem mão para todos aqueles que, ao contrário do Pedro, decidiram anular-se e subjugar-se ao que a sociedade esperava deles. 

Nesta breve reflexão começo por falar nas gerações que me seguiram, da sua sorte. Atenção. Que nunca a palavra sorte denote em mim um sentimento de inveja ou de desdém. O mundo evoluí, felizmente… Contudo, vi a peça, e não pude deixar de pensar. Tal como o Pedro, eu nunca fui totalmente aceite pela minha família. O meu pai diz que me ama, mas recusa-se, terminantemente, a conhecer qualquer homem por quem eu nutra sentimentos. Como o Pedro sofri na infância e adolescência maus tratos por não gostar de futebol e preferir as bonecas. E apanhei muito em silêncio nos tempos de escola… Se era o mariquinhas fora de casa, não me podia permitir sê-lo em família. Como o nosso herói, aprendi a sofrer calado, a odiar-me, a mendigar um bocadinho de amor. Tive de cair 10 vezes e levantar-me 100 e reconstruir-me outras 100 ou 200 – será que não o faço ainda hoje? Não tive, como o Pedro, modelos. Ninguém me ensinou a amar. Sem qualquer tipo de referência como saberia, lá atrás, como é que um homem ama um homem? Certamente, não será da mesma forma que um homem ama uma mulher. Como é que alguém me iria dar referências ou ensinar a amar se, tal como ao Pedro, o que me era pedido era que fosse um homem, seja lá isso o que for…

A arte, sem qualquer sombra de dúvidas, imita a vida e é catárse, questiona-nos, faz-nos chorar, reviver, mas, no fim, cura-nos. “A última carta ao meu pai” é todo um convite à reflexão, não só para os homens da minha idade, mas para todos, pois desperta o Pedro adormecido que existe em todos nós, que sofreu, caiu, levantou-se, mas, sobretudo, fez caminho para uma vivência plena. 

“A última carta ao meu pai” esteve em cena no auditório Carlos Paredes, em Lisboa, entre 8 e 10 de Maio.

 

Ricardo Falcato

2 Comentários

  • Pedro Pina

    Um dos textos mais bonitos que foi escrito sobre o meu espectáculo. Obrigado Ricardo. Como alguém me disse há muitos anos, se tiver tocado no coração de apenas uma pessoa, então já valeu a pena!

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