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Braga: Um Arquivo Queer

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Carlos Marinho é psicólogo clínico, criador artístico freelancer, e activista pela promoção dos direitos LGBTQI+. O seu primeiro contributo para o trabalho de activismo deu-se em 2013, como co-organizador e porta-voz da primeira Marcha pelos Direitos LGBT de Braga. De então a esta parte, tem prestado à comunidade um núcleo de serviços inclusivos, dedicados à optimização do crescimento pessoal e colectivo, desde consultas de acompanhamento terapêutico a projectos de intervenção social alicerçados no cruzamento entre os domínios da arte e da psicologia.

 

A celebrar o mês do Orgulho LGBT na ‘Cidade dos Arcebispos’, apresenta o seu mais recente projecto: um Arquivo de memórias LGBTQI+, em formato digital, com o objectivo de resgatar, organizar e preservar a memória LGBTQI+ de Braga, trazendo representatividade e visibilidade a todas as suas identidades. Para o efeito, conta com o apoio da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, e da Associação Juvenil SYnergia, estando em desenvolvimento – e aberta a toda a comunidade – uma equipa de trabalho para a manutenção do projecto. Parte do esforço desta equipa vem-se dirigindo à possibilidade de criar uma rede arquivística entre várias cidades de Portugal continental (zona Norte) e insular. 

 

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Recorte de artigo escrito por Agostinho Santos e Filomena Martins, para o tablóide português Tal&Qual, publicado em 1984, a propósito da inauguração da Associação de Homossexuais do Norte, em Braga.

 

“A preservação da memória está estreitamente ligada ao sentido de identidade e ao sentimento de pertença social. Museus, arquivos, casas de cultura, institutos históricos, são exemplos de lugares de memória, criados para se manter viva a memória de um grupo ou de uma nação, para se manter um vínculo de pertença e de identificação entre as pessoas. São lugares que se justificam pela ameaça do esquecimento e pelo impacto que as diversas informações podem ter na manutenção de certos núcleos sociais. Porém, na sua maioria, os lugares de memória do Ocidente moderno tendem a compactuar com a cristalização de uma certa versão oficial da memória colectiva, concentrando representações discursivas que suportam um passado tradicionalista e conservador, manipulando a história para assegurar o constante protagonismo hegemónico do homem branco, ocidental, conquistador, e cis/hetero-normativo. Ao fazê-lo, invisibilizam a diversidade de grupos lidos socialmente como ‘subalternos’, no número das quais se contam as comunidades LGBTQI+. A promoção de normas culturais hegemónicas e o silenciamento das memórias LGBTQI+ não só leva à supressão do conhecimento da tradição destes grupos, do seu património cultural, da sua continuidade e do seu esteio social, como também à activação de fobias à diversidade sexual, de atitudes de perseguição, de discriminação e de violência. Perante a actual ascensão de políticas discriminatórias faz-se premente assinalar e sanar esta percebida descontinuidade histórica, de forma a devolver um sentido de pertença e de união a toda a comunidade.

É aqui que se percebe crucial apostar em equipamentos culturais que possam ressignificar e positivar as memórias associadas à experiência das sexualidades não-normativas. Sabendo que as memórias oficiais são permeadas por várias formas de poder autoritário, a sua democratização é um passo importante para se evitarem selecções excludentes. Em Portugal, é de nota a criação do Centro de Documentação Gonçalo Diniz, na cidade de Lisboa, em 1998. Neste mesmo centro funciona o único projecto formal encontrado em Portugal voltado à salvaguarda da memória LGBTQI+, onde se disponibiliza um vasto acervo de livros, revistas, trabalhos de investigação, vídeos, recortes de jornais, entre outros materiais, sobre a temática. Mais recentemente, fez notícia o Museu Lusófono da Diversidade Sexual, ainda em desenvolvimento, pensado para contar a história das conquistas da população LGBTIQ+ dos nove países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste.  E ainda, o apelo da Comissão Promotora de Homenagem a António Variações para a criação do museu em memória do grande ícone gay, em Amares, no distrito de Braga.

 

O direito à memória

Ainda incipiente, a pesquisa sobre a história LGBTQI+ em Portugal é marcada pelos trabalhos de Miguel Vale de Almeida, Fernando Cascais, São José Almeida, Ana Cristina Santos e Raquel Afonso; porém, é raro falar-se, em pormenor, de histórias locais ou regionais. Braga – o lugar em que vivi a maior parte da minha vida – ganha aqui particular destaque como a mais antiga cidade portuguesa e uma das cidades cristãs mais antigas do mundo, contando com mais de 2000 anos de História. Sabe-se que historicamente a Igreja Católica vem resistindo à aceitação de orientações sexuais não-normativas dentro e fora da sociedade cristã, tendo começado por tratá-las como pecaminosas e perversas, para depois as encarar como desvios comportamentais – somente admissíveis se devidamente reprimidos. Diferentemente da existência católica e judaica, a existência LGBTQI+ tem sido vivida de forma subterrânea, e Braga – sem qualquer Museu que lhe arquive uma história associada a esta comunidade – é disso exemplo flagrante. Tratada originalmente como a ‘cidade dos três P’s’, não deixa de ser imerecido que apenas um deles tenha vingado na sua história oficial.

Pesando estas evidências, a necessidade de procurar – através das memórias – o não-dito sobre o passado, e de se abrirem caminhos para a reconsolidação das memórias LGBTQI+, pode implicar, como acto de resistência, novas tipologias de inventário: como a subversão dos espaços de vocação museológica convencionais, e a criação de um espaço construído por/para e com a comunidade – um espaço que sublinhe o direito da comunidade falar de si mesma, por si mesma. Sabe-se que, tradicionalmente, o trabalho de enquadramento da memória está a cargo de um poder institucional, mas é sempre possível para o/a cidadão/ã comum preservar a sua memória, e apoderar-se da escolha daquilo que sinta merecer ser cristalizado. Neste sentido, as redes sociais são plataformas muito promissoras, já que permitem o armazenamento de vestígios do passado e a sua divulgação em larga escala.

 

Os objectivos do Arquivo
Estruturado numa página de Facebook e Instagram, o Arquivo Queer de Braga pretende responder a estas necessidades, apresentando-se como lugar de memória para dar guarida aos vestígios – materiais e simbólicos – produzidos no contexto das comunidades LGBTQI+ de Braga, até à actualidade. Um espaço inclusivo e plural, oposto a quaisquer vieses andro e cis/heterocêntricos.

braga arquivo queer

A ambição é também a de contribuir para a restauração de um sentido de solidariedade transgeracional, sanando o percebido fosso de gerações entre idosos/as e jovens LGBTQI+. Grande parte dos privilégios de que hoje usufruímos são o resultado do esforço pioneiro de quem nos antecedeu na contínua batalha pelos nossos direitos, e muitos/as jovens desconhecem-no. Andamos sempre empoleirados/as aos ombros de gigantes. Hoje podemos ver mais e mais longe do que os/as nossos/as predecessores/as: não necessariamente por termos uma visão mais evoluída, mas porque somos levantados/as e carregados/as pelo seu legado histórico. É o conhecimento desse legado que nos norteia no tempo e no espaço, e nos permite uma visão de grande angular, compreensiva e crítica, sobre a realidade, sobre os nossos direitos e deveres em sociedade. Uma pessoa sem memória caminha desorientada. Sem conhecimento do passado, alheia-se do presente e torna-se incapaz de se projectar no futuro. O mesmo acontece com uma cidade, com um país, com toda uma civilização.

Hoje podemos ver mais e mais longe do que os/as nossos/as predecessores/as: não necessariamente por termos uma visão mais evoluída, mas porque somos levantados/as e carregados/as pelo seu legado histórico. É o conhecimento desse legado que nos norteia no tempo e no espaço, e nos permite uma visão de grande angular, compreensiva e crítica, sobre a realidade, sobre os nossos direitos e deveres em sociedade. Uma pessoa sem memória caminha desorientada. Sem conhecimento do passado, alheia-se do presente e torna-se incapaz de se projectar no futuro. O mesmo acontece com uma cidade, com um país, com toda uma civilização. São os/as idosos/as que asseguram a transmissão dos valores às gerações actuais, e lembram que a história não se inicia connosco – que somos herdeiros/as de um longo caminho, responsáveis pela passagem de testemunho para o futuro.

São os/as idosos/as que asseguram a transmissão dos valores às gerações actuais, e lembram que a história não se inicia connosco – que somos herdeiros/as de um longo caminho, responsáveis pela passagem de testemunho para o futuro.

Chamo-lhes, na brincadeira, os nossos elefantes (porque, diz-se, os elefantes não esquecem). Mas para uma cultura atenta ao lucro, à eficiência e ao imediatismo, esta faixa populacional é recorrentemente desprezada. Se o ageísmo está presente na sociedade mainstream, a discriminação passa a ser dupla para pessoas LGBTQI+ idosas. Em resposta aos constantes insultos da sociedade, muitas delas mantêm-se no isolamento, ou na condução de vidas duplas, impedidas de se expressarem e de viverem livremente. Por isso mesmo, apesar das entrevistas que o Arquivo tem proposto, é ainda difícil aceder a um número significativo de testemunhos. Os esforços continuarão, e toda a ajuda é mais do que bem-vinda nesta ‘caça aos elefantes’.

Considera-se que o Arquivo Queer poderá aproximar-se mais de um mosaico de fragmentos do que de uma memória organizadora em larga escala. Entende-se que a memória seja uma categoria dinâmica, documental, manipulável, em constante esforço de actualização. Mas não se despoja de expressividade, nem deixa de cumprir o objectivo de trazer representatividade, visibilidade e união às identidades LGBTQI+ que dele queiram fazer parte. Pretende usar-se este Arquivo como estratégia de reivindicação de um passado, e de legitimação do lugar activo na história das comunidades LGBTQI+ no corpo social, promovendo a sua coesão e continuidade, em prol de um futuro onde direitos civis nos sejam plenamente assegurados, em especial, o direito à memória.

 

Entidades parceiras neste projecto
No intuito de assegurar o máximo alcance e visibilidade deste trabalho, foi solicitada colaboração à Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva (BLCS), que diligenciará pela compilação, tratamento técnico, disponibilização em catálogo e em livre acesso de toda a documentação impressa e digital que o Arquivo reunir. Foi também contactada a Associação Juvenil SYnergia de Braga, tendo posteriormente surgido a possibilidade de articulação com os demais pólos sinérgicos do país. Do dia 20 a 27 de Abril, estive reunido por Zoom com representantes do Porto, de Bragança, de Vila Real, dos Açores e da Madeira, com o propósito de apresentar o estado-da-arte do Arquivo e orientar forças de trabalho voluntário para reforçar a sua estruturação. Cada representante ficou encarregue de divulgar o projecto nos seus círculos de conhecimento, activando contactos pessoais e institucionais que possam querer colaborar. Foi ainda discutida a possibilidade de expansão do Arquivo para uma rede arquivística envolvendo as cidades em causa, proposta que se mantém em desenvolvimento.

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Reuniões de trabalho com os pólos da Associação SYnergia, parceira do Arquivo

 

Foi ainda aproveitado o projecto de submissão da candidatura de Braga a Capital Europeia da Cultura 2027 (em preparação desde 2018), para destacar o Arquivo. Em Fevereiro deste ano, a iniciativa dedicou-se a reunir as vozes da cidade para organizar a estratégia cultural para a década de 2020-2030; nos dias 5 e 26 de Fevereiro fiz parte das sessões de trabalho desta iniciativa, tendo a ideia sida devidamente incluída na segunda alínea da listagem produzida pelo grupo “Cultura e Espaço Público”: “Aumentar as manifestações no espaço público de grupos que tendencialmente não se incluem numa lógica mais patriarcal da cidade, como LGBT (…) Espaço público enquanto lugar de reflexão, de activismo, de memória, potenciando a presença e o aumento destas no discurso da cidade. Criar ainda, neste contexto, uma colecção arquivística da história, destes centros, nestes grupos”. Aguardam-se desenvolvimentos para saber que tipo de apoios esta iniciativa poderá conceder ao Arquivo.

Se é verdade que não devemos demorar-nos onde não somos amados/as, se é verdade que se não pertence a lugares em que nos temos de fazer pequenos/as para caber, não o é menos que é da nossa responsabilidade cultivar o amor e a aceitação nos terrenos em que se façam escassos. O espaço público ideal não deverá ser meramente ocupado, mas sim plenamente habitado, num exercício de cidadania e de atenção para quem o habita. Cada cidadão/ã é protagonista da cidade; cada um/a é um/a intermediário/a habilitado/a para a sua mudança e para o seu crescimento. É da nossa responsabilidade individual e colectiva fazer de Braga uma cidade de inclusão.

 

arquivo braga queer

Um apelo à contribuição de todos/as
O contributo de cidadãos/ãs mais velhos – e não só – é essencial para o resgate das memórias colectivas. Assim, apela-se à participação de todos/as os/as que queiram contribuir com informações sobre os seus próprios percursos LGBTQI+, em Braga e arredores, bem como obras de arte, ensaios, entrevistas, reportagens, contos, artigos de revista e jornal, que tenham sido publicados sobre a temática (preferencialmente com a indicação da fonte e data da publicação). A todo o momento é garantida a protecção da sua identidade, e negociada a confidencialidade no tratamento da informação pessoal.
À medida que novas informações forem chegando, o Arquivo será devidamente actualizado. Por enquanto, e a todo o momento, fica o convite a toda a comunidade”.

 

Carlos Marinho

 

A página de Facebook do Arquivo pode ser visitada aqui: https://www.facebook.com/ArquivoQueer.Braga

O perfil de Instagram do Arquivo pode ser visitado aqui:
https://www.instagram.com/arquivo_queer_braga
Se queres colaborar no Arquivo, envia mensagem para os contactos:
E-mail/Skype: consultorio.carlosmarinho@gmail.com
Tlm./WhatsApp: (+351) 963 008 056