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Mulheres do Meu País - séc. XXI – Conversa com Cidália Vargas Pecegueiro

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Mulheres do Meu País – Séc. XXI, obra da autoria de Cidália Vargas Pecegueiro e fotografia de Margarida Pereira Müller, mostra trazer através de 31 histórias de vida de mulheres portuguesas dos nossos dias, um tributo ao 75º aniversário da obra homónima de Maria Lamas, escritora, jornalista e feminista portuguesa que procurara desconstruir a figura monolítica da mulher inculcada pela ideologia patriarcal do Estado Novo. 

Um livro que pretendendo representar mulheres portuguesas com percursos de vida diametralmente opostos, algumas delas pioneiras em profissões marcadas pela hierarquia de género como a astrofísica da NASA, Cristina Oliveira; a primeira mulher a pilotar caça bombardeiros na Força Aérea, Paula Costa; ou a 2ª Comandante dos Bombeiros Voluntários de Santo Tirso, Rute Neves, entre tantas outras das mais diferentes esferas e valências profissionais, mostra servir de inspiração à demanda plural dos feminismos contemporâneos.

Entre a lista de nomes entrevistadas, alguns são-nos bastante familiares, contando com a coordenadora e investigadora em Estudos de Género, Anália Torres; a Professora Catedrática e Especialista em Relações Sociais de Género, Teresa Pizarro Beleza; a engenheira de software e activista LGBTQIA+, Daniela Bento; a fundadora da Casa Qui, Rita Paulos; ou ainda a activista trans e dirigente do Bloco de Esquerda, Júlia Pereira. Porém, existem também aquelas cujo trabalho muitas vezes nos passam despercebidos como o da activista e presidente da Associação de Investigação e Dinamização da Comunidade Cigana, Olga Mariano; a Presidente do Clube Mulheres de Negócios de Portugal, Rijarda Aristóteles ou ainda a Capitã da Seleção Nacional de Râguebi XV, Leonor Amaral.

O dezanove.pt esteve à conversa com Cidália Vargas Pecegueiro, a autora da recém publicada obra feminista, no qual a convidamos a responder a algumas provocações e inquietações levantadas pelo livro:

 

dezanove.pt: O que podem esperar os leitores do dezanove.pt com esta obra homónima de Maria Lamas e o que aproxima e distingue as duas obras? 

Cidália Vargas Pecegueiro: Mulheres do meu país – Século XXI representa a pluralidade de mulheres existentes na sociedade portuguesa da actualidade, da qual fazem parte diversas identidades de género, diferentes orientações sexuais, diferentes etnias e mulheres com deficiências. 

Maria Lamas quis demonstrar com a sua obra que as mulheres, ao contrário do que dizia o Estado Novo, trabalhavam e viviam em condições indignas. Por isso viajou por todo o país, tendo de se deslocar algumas vezes a pé e até de burro, para chegar a lugares recônditos. 

Felizmente, a realidade da maioria das portuguesas do nosso país actualmente é muito diferente e por isso, o nosso objectivo foi o de retratar mulheres que alcançaram os seus objectivos e que conseguiram vencer diferentes obstáculos. Consideramos que a sociedade de hoje está carente de exemplos, a nível geral, mas sobretudo quando falamos de mulheres. As meninas e raparigas precisam querer seguir mulheres que admiram e esse é o objectivo deste livro.

As duas obras são uma homenagem às mulheres do nosso país e ambas tentam dignificá-las, partindo de realidades sociais diferentes. 

 

Sendo esta uma obra que reflecte a interseccionalidade de identidades femininas e dos feminismos do séc. XXI, com um total de 31 histórias de vida, qual para si os maiores desafios em prol da igualdade de género e não discriminação actualmente em Portugal?

Quando analisamos a evolução que houve na nossa sociedade desde a década de quarenta, altura em que a obra de Maria Lamas, As Mulheres do meu país, começou a ser publicada em fascículos (1948-50), até hoje, é inegável a enorme evolução em termos de direitos e garantias, não só por parte das mulheres como também de outros grupos, como é o caso das pessoas LGBTQI+, afrodescendentes ou da comunidade cigana.

Segundo a Constituição de 1976, o valor fundamental em que passou a assentar a República Portuguesa é a dignidade da pessoa humana. 

A promoção da igualdade entre homens e mulheres passou a ser uma das tarefas fundamentais do Estado. 

O princípio da igualdade foi consagrado na lei, sendo proibidas quaisquer discriminações injustas, como é o caso, por exemplo, das discriminações com base no sexo.

Foram consagrados iguais direitos de participação política e do acesso a funções e cargos públicos.

Homens e mulheres passaram a ter direito a constituir família e de casar em igualdade e com direitos iguais quanto à capacidade civil e à guarda e educação dos filhos.

Homens e mulheres, maiores de idade, passaram a ter liberdade de se deslocarem para onde desejassem sem necessidade de autorização de ninguém.

As mulheres passaram a ser titulares de direitos culturais, o que lhes permitiu aceder a níveis mais elevados de ensino, investigação científica e criação artística.

No plano laboral, a mulher passou a poder escolher a profissão que deseja exercer, tendo o Estado o dever de promover a igualdade de oportunidades relativamente à escolha da profissão ou do acesso ao trabalho.

A mulher passou a gozar também do direito a ser remunerada de acordo com o princípio de que a trabalho igual deve corresponder igual salário.

Quanto à liberdade sexual e reprodutiva, foi reconhecido o direito às mulheres ao exercício de uma maternidade consciente e ao recurso a serviços de planeamento familiar.

Relativamente à orientação sexual, foi em 1982 que o nosso país deixou de considerar a homossexualidade um crime. No entanto, só em 1990 é que a Organização Mundial da Saúde (OMS) deixou de a classificar como doença. 

Em 2004, Portugal ao introduzir a orientação sexual no artigo 13º da Constituição fez com que a homossexualidade passasse a ser um dos campos proibidos de discriminação.

Em 2010, o casamento foi estendido a casais de pessoas do mesmo sexo e em 2015, foram aprovadas a adopção e co-adopção de crianças por casais do mesmo sexo. 

Finalmente, em relação às identidades trans, só em 2019 é que a OMS deixou de as considerar como uma doença mental. 

Portanto, se Maria Lamas vivesse actualmente, estaria certamente orgulhosa dos frutos do seu trabalho e empenho na melhoria do estatuto sócio-jurídico das portuguesas. 

No entanto, muito falta ainda conseguir para que a igualdade de facto entre os sexos seja uma realidade:

Falta uma maior participação das mulheres em cargos políticos.

As mulheres continuam a auferir menos comparativamente aos homens que desempenham iguais funções. Varia entre 25 e 33% o que recebem a menos.

Falta acederem também a cargos mais elevados em instituições publicas e privadas.

Falta combater o flagelo da violência contra as mulheres

Falta dar voz a mulheres de outras etnias e comunidades, de outras identidades de género, de diferente orientação sexual e com múltiplas deficiências. 

Tal como refere Lígia Amâncio, professora emérita do ISCSTE, que escreveu o prefácio desta obra, falta o respeito por qualquer pessoa discriminada com base no sexo, na sexualidade, na identidade sexual ou qualquer deficiência.  

Falta o respeito pela diferença, pela diversidade e a consciência de que a discriminação é um atentado contra o bem comum. 

 

Qual a razão da escolha destas 31 mulheres/histórias de vida e qual o critério de selecção?

A selecção respeitou vários critérios. Em primeiro lugar quisemos retratar mulheres representativas da sociedade portuguesa deste século, tal como já referi anteriormente.

Em segundo lugar quisemos incluir mulheres jovens e mulheres mais velhas para que as histórias de vida espelhassem diferentes momentos e realidades sociais do nosso país.

Em terceiro lugar procurámos incluir mulheres de diferentes zonas geográficas do país, o que nos obrigou viajar de Norte a Sul, uma vez que fotografámos as mulheres nos seus locais de trabalho - as bonitas fotografias são de autoria de M. Margarida Pereira-Müller.

Outra preocupação foi retratar mulheres que não fossem conhecidas do grande público. Queríamos dar a conhecer histórias de vida inspiradoras, mulheres guerreiras, que com mais ou menos dificuldades, venceram obstáculos, ultrapassaram tectos de vidro nas mais diferentes áreas de actividade e que são, por isso, exemplo para todas e todos.

Finalmente, outro objectivo foi procurar profissões que têm sido desempenhadas maioritariamente por homens. Temos uma astrofísica da NASA, temos uma mineira de fundo de mina, uma pescadora que comanda o seu próprio barco, uma vidreira, uma empresária agrícola, enfim, um vastíssimo painel de mulheres que desbravaram caminho para que outras as possam seguir.      

 

Qual o impacto esperado com esta obra e qual a adesão do público mais jovem até agora? 

Quando começámos a preparar esta obra há dois anos atrás, o nosso principal objectivo era conseguir criar um livro que pudesse prestar um tributo a Maria Lamas digno do seu nome e do seu legado.

Este ano celebram-se 75 anos do início da publicação em fascículos de "As Mulheres do meu país", pelo que considerámos fundamental criar um livro actual que permitisse voltar a falar desta obra, pois apesar de incontornável, continua a ser desconhecida de muitos portugueses, sobretudo os mais jovens.

Considerámos que na actual conjuntura fazia sentido criar uma obra na qual participassem várias vozes. Para além das 31 retratadas, que nos contaram as suas histórias de vida, existem outras tantas investigadoras envolvidas, às quais solicitámos que reflectissem sobre a evolução e a importância da participação das mulheres em cada uma das actividades retratadas. Ou seja, depois das histórias de vida, há sempre um texto que analisa a importância da participação feminina nessa actividade. Temos assim o contributo de investigadoras sobre a participação das mulheres na política, na medicina, na ciência, na agricultura, nas fábricas, na pesca e assim sucessivamente.   

Felizmente, o interesse que o livro está a despertar superou todas as nossas expectativas. No lançamento, na Casa do Alentejo, tivemos mais de duzentas pessoas, o que demonstra bem a curiosidade pelo mesmo. De igual forma, o destaque que tivemos nos média foi enorme.

Da parte do público, sentimos uma procura muito grande, o que no nosso entender, se deve ao facto da obra ser muito visual e didáctica. Foi desenhada (a designer é a Andrea Pahim que já ganhou vários prémios de design) de uma forma muito “clean” e apelativa que facilita a leitura tornando-a apetecível.

Está dividida em três grandes separadores: 

O primeiro dá a conhecer a evolução dos direitos das mulheres desde o Estado Novo até hoje. 

O segundo apresenta as histórias de vida. 31 mulheres inspiradoras, apresentadas em magníficas fotografias nos seus locais de trabalho. Essas histórias são enquadradas por textos de investigadoras que permitem ao/à leitor/a acompanhar a evolução da participação feminina nos mais diversos campos de actividade. Ainda em cada retratada existe também uma caixa em que se indicam algumas pioneiras de cada actividade.

Finalmente, o último separador é de tributo a Maria Lamas, composto por vários textos de investigadoras e familiares de Maria Lamas, como é o caso de Alice Vieira, prima da autora ou Joana Pereira Bastos, bisneta. 

 

A autora mais informa que a obra está disponível para venda a partir da livreira online Wook.pt ou directamente através do Facebook das autoras.

 

Daniel Santos Morais é mestre em Sociologia pela Universidade de Coimbra. Feminista, LGBTQIA+, activista pelos Direitos Humanos. Partilha a sua vida entre Coimbra e Viseu.