Viver fora da norma dominante é, muitas vezes, caminhar sobre o fio da navalha. Para muitas pessoas LGBTQIA+, esse fio não é apenas simbólico — é real, cortante e diário. E corta mais fundo quando os discursos políticos e religiosos, em vez de promoverem acolhimento, alimentam estigmas que adoecem, isolam e ferem.
Quando a palavra se torna ferida
Enquanto psicóloga, assisto com frequência à forma como palavras aparentemente inócuas ou “opiniões pessoais” ecoam em profundidades psíquicas que, em muitos casos, estão já marcadas por anos de rejeição, vergonha e medo. Quando um político afirma que a diversidade de género “confunde as crianças” ou quando um líder religioso sugere que a homossexualidade é “um desvio”, o impacto destas declarações ultrapassa a esfera pública — chega ao consultório, entra em casa, molda a auto-estima, contamina os afectos.
Estudos internacionais e nacionais revelam que pessoas LGBTQIA+ têm maior prevalência de ansiedade, depressão e ideação suicida. Mas importa dizer, com clareza: estas não são “características” da identidade LGBTQIA+ — são consequências directas da discriminação, do preconceito, da invisibilidade e da violência.
Fé: ferida ou fonte?
A religião pode ser uma das maiores fontes de suporte emocional, espiritual e comunitário. Mas, para muitas pessoas LGBTQIA+, é também o lugar da rejeição. Inúmeras histórias de pessoas excomungadas das suas igrejas, famílias ou comunidades em nome da “fé” ilustram esta realidade. A rejeição religiosa atinge camadas profundas: não fere apenas a identidade, mas muitas vezes questiona o próprio direito de existir, de ser amado, de pertencer.
Os discursos religiosos têm um poder profundo sobre a consciência colectiva e individual, e quando são usados para afirmar que uma orientação sexual ou identidade de género é “pecado”, “desvio” ou “obra do demónio”, causam um dano psicológico imenso.
É comum ouvir frases como:
• “Amamos o pecador, mas não o pecado.”
• “Deus criou o homem e a mulher, e mais nada.”
• “A homossexualidade é uma prova a ser superada com oração.”
Estas falas perpetuam a culpa, o auto-julgamento e, frequentemente, levam à chamada internalização da homofobia/transfobia — um processo onde a própria pessoa LGBTQIA+ passa a acreditar que há algo de errado com ela, prejudicando gravemente a sua auto-estima e saúde emocional.
Este tipo de discurso também contribui para dinâmicas familiares tóxicas, onde jovens são pressionados a submeter-se a “terapias de conversão”, expulsos de casa ou privados de afeto em nome de uma suposta “cura espiritual”.
Ainda assim, é importante sublinhar que não é a fé que exclui — são as interpretações dogmáticas, os fundamentalismos e os interesses de poder que instrumentalizam textos sagrados para perpetuar normas heterocisnormativas. Felizmente, existem teologias inclusivas, comunidades religiosas acolhedoras e vozes de fé que abraçam a diversidade como parte da criação.
Políticas públicas ou Políticas de silêncio?
Se os discursos religiosos têm a capacidade de afectar profundamente a vivência individual e familiar, os discursos políticos moldam as condições sociais em que essa vivência acontece. Ambos operam em esferas diferentes, mas frequentemente alinham-se na produção de exclusão e sofrimento psicológico.
Num contexto político em que os discursos anti-LGBTQIA+ ganham espaço, há um perigo real de retrocesso. Em Portugal, embora existam avanços legislativos importantes, persistem lacunas gritantes em áreas como o acesso à saúde mental afirmativa, a protecção de jovens LGBTQIA+ em contextos escolares e familiares, e o combate à violência motivada por preconceito.
As palavras dos líderes políticos não são neutras. Elas moldam o espaço social, definem o que é “normal” e influenciam directa ou indirectamente políticas públicas. Quando responsáveis políticos descrevem famílias LGBTQIA+ como “aberrações”, “ameaças à ordem natural” ou “ideologia de género a ser combatida nas escolas”, estão a alimentar o preconceito e a legitimar o estigma.
Frases como:
• “Casamento é entre homem e mulher, ponto final.”
• “Vamos proteger as crianças da agenda LGBT.”
• “A ideologia de género destrói os valores da família.”
Estas afirmações não são apenas opiniões — são declarações que marginalizam, geram medo, promovem o isolamento social e impactam directamente a auto-estima, a segurança e o bem-estar psicológico de quem cresce ou vive fora das normas heteronormativas.
Além disso, políticas que tentam restringir o acesso a cuidados de saúde afirmativos, à educação inclusiva ou que barram a autodeterminação de género não são neutras: são actos de violência institucional que aumentam o risco de depressão, ansiedade, ideação suicida e stress pós-traumático na população LGBTQIA+.
Entre a ferida e a fé, que caminho seguimos?
Podemos continuar a afiar o fio da navalha com discursos que ferem, ou podemos escolher palavras que curam, políticas que acolhem, e práticas religiosas que não excluem. A escolha está diante de todos nós — na linguagem que usamos, nas causas que defendemos, nos silêncios que decidimos quebrar.
Só assim deixaremos de caminhar sobre o fio da navalha e passaremos a trilhar caminhos onde a fé, a política e a saúde mental possam coexistir — sem ferir.
Letícia David, Psicóloga
Um Comentário
Anónimo
Por isso deviam de voltar a colocar o crucifixo em todas as escolas e todas as salas de aulas.
Pois a presença da representação de Deus numa sala de aulas ajuda a que as pessoas se possam orientar nos piores momentos e deixar-nos mais seguros quando mais nada nos pode acudir, nem mesmo um psicólogo.
Eu próprio me perdi e pensava ter abandonado Deus, e no pior momento da minha vida quando achava que era um amigo, um familiar ou um conhecido que me ia resolver o problema, reencontrei Deus e nunca mais o deixei, ainda bem que Deus nunca me abandonou.