a saber

O que é o género? E porque é tão politizado actualmente?

O género, como definido pela Organização Mundial de Saúde (OMS), é:

“as características das mulheres, homens, raparigas e rapazes que são socialmente construídas. Isto inclui normas, comportamentos e papéis associados a ser mulher, homem, rapariga ou rapaz, bem como relações entre si. Como construção social, o género varia de sociedade para sociedade e pode mudar ao longo do tempo. (…) O género interage, mas é diferente do sexo, que se refere às diferentes características biológicas e fisiológicas das mulheres, dos homens e das pessoas intersexo, como os cromossomas, as hormonas e os órgãos reprodutivos. O género e o sexo estão relacionados, mas são diferentes da identidade de género. (Fonte: OMS, 2025)

O que é a identidade de género?

“A identidade de género refere-se à experiência de género profundamente sentida, interna e individual de uma pessoa, que pode ou não corresponder à fisiologia da pessoa ou ao sexo designado no nascimento.” (Fonte: OMS, 2025)

 

Porque é importante falar sobre género?

“O género é hierárquico e produz desigualdades que se cruzam com outras desigualdades sociais e económicas. A discriminação em função do género cruza-se com outros factores de discriminação, como a etnia, o estatuto socioeconómico, a deficiência, a idade, a localização geográfica, a identidade de género e a orientação sexual, entre outros. Isto é chamado de interseccionalidade. (…) A desigualdade de género e a discriminação enfrentadas pelas mulheres e raparigas colocam a sua saúde e bem-estar em risco. As mulheres e as raparigas enfrentam frequentemente maiores barreiras do que os homens e os rapazes no acesso a informação e serviços de saúde. Estas barreiras incluem restrições à mobilidade; falta de acesso ao poder de decisão.” (Fonte: OMS, 2025)

 

Porque devemos dar atenção às questões de género na sociedade?

“As mulheres e as raparigas enfrentam maiores riscos de gravidezes indesejadas, infecções sexualmente transmissíveis, incluindo o VIH, cancro do colo do útero, subnutrição, visão reduzida, infecções respiratórias, subnutrição e abuso de idosos, entre outros. As mulheres e as raparigas enfrentam também níveis inaceitavelmente elevados de violência enraizada na desigualdade de género e correm um sério risco de práticas prejudiciais, como a mutilação genital feminina e o casamento infantil precoce e forçado. Dados da OMS mostram que cerca de 1 em cada 3 mulheres no mundo já sofreu violência física e/ou sexual por parte do parceiro íntimo ou violência sexual por parte de terceiros durante a sua vida.”

“As normas de género prejudiciais – especialmente as relacionadas com noções rígidas de masculinidade – podem também afectar negativamente a saúde e o bem-estar dos rapazes e dos homens. Por exemplo, noções específicas de masculinidade podem encorajar rapazes e homens a fumar, a correr riscos sexuais e outros riscos para a saúde, a abusar do álcool e a não procurar ajuda ou cuidados de saúde. Estas normas de género contribuem também para que os rapazes e os homens cometam violência, para além de serem eles próprios sujeitos à violência. Podem também ter implicações graves para a sua saúde mental. (Fonte: OMS, 2025)

Vemos então que a maioria das questões de género se prende com a rigidez social aplicada ao que significa ser homem e mulher ou rapaz e rapariga e que comportamentos, e papéis sociais estão associados a esses dois géneros. Vemos que as questões de género importam ainda sobretudo à maioria da sociedade. Quando se fala de género não se fala de ideologia, mas de uma luta por desafios que ainda existem e que continuam a afectar sobretudo as mulheres nas nossas sociedades. Apesar de tudo, também existem outras identidades de género que não se encaixam no que é típica e socialmente aceite, como as identidades não-binárias. Diz também a OMS: 

“As normas de género rígidas também afectam negativamente pessoas com identidades de género diversas, que enfrentam frequentemente violência, estigma e discriminação como resultado, incluindo em ambientes de cuidados de saúde. Consequentemente, correm maior risco de VIH e de problemas de saúde mental, incluindo o suicídio.” (Fonte: OMS, 2025)

 

O que é o género e como se diferencia de sexo?

Todas as pessoas podem ter uma teoria de género, isto é, todos podemos ter uma visão ou percepção diferente do que é o género e que variáveis incluirá. Esta é a visão de Judith Butler, eminente filósofa da universidade da Califórnia em Berkeley, conhecida por seu trabalho em teoria de género, feminismo e teoria queer. Os seus livros mais influentes incluem Gender Trouble (1990) e Bodies That Matter (1993).

Esta filósofa acredita que, apesar das diferenças biológicas, a questão do género é algo em aberto, e que não determina quem a pessoa é ou deve ser desde o nascimento. 

É necessário começar por desconstruir a diferença entre sexo e género, a origem de todas as confusões sobre este assunto. O sexo é um conjunto fixo de características biológicas que permeiam a maioria das espécies de vertebrados e que tem como função a reprodução. O género é mutável e depende da classificação, das normas sociais e culturais e da auto-identificação. É científico e consensual que o género, ao contrário do sexo, é algo mutável, assim o afirma a Organização Mundial de Saúde. 

O sexo são as características físicas e genéticas inatas da espécie. O sexo é binário na espécie humana, dividindo-se entre “macho” e “fêmea” ou “masculino” e “feminino”. Tem três dimensões:

  • o genótipo, ou seja, os cromossomas
    • XX (mulher)
    • XY (homem)
  • características sexuais primárias (genitais e gónadas)
    • vagina e ovários (mulher)
    • pénis e testículos (homem)
  • características sexuais secundárias (efeitos hormonais e fenótipo)
    • mamas, produção de leite, ancas largas, voz aguda (mulher)
    • ombros largos, voz grave, barba, pelos corporais (homem)

 

Os termos “homem” e “mulher” também podem ser usados para o sexo, ao mesmo tempo que são usados como categorias sociais (género) o que causa confusão. No entanto há exceções à regra, nomeadamente condições congénitas e genéticas ou genitais atípicos que podem levar a ambiguidade sexual. Aí temos a exceção à típica binaridade sexual humana, e aplica-se o termo:

  • “intersexo” – variações de características sexuais (cromossómicas, genitais ou nas gónadas) que não se encaixam nas noções típicas de sexo masculino ou feminino

Então o que é o género?

É uma categorização sociocultural dos humanos com base no sexo, expressão (roupas, apresentação social), papéis sociais (estereótipos de género) e auto identificação. Tipicamente as sociedades têm dois géneros, seguindo o binarismo sexual dos humanos, mas nem sempre é assim, pois há muitas sociedades e culturas com um terceiro género, ou mais (Índia, Nepal, Paquistão, Bangladesh, Samoa, Tailândia, indígenas norte-americanos, etc.)

Com base na identidade de género, ou seja, a auto-identificação com o género/sexo atribuído à nascença temos o termo:

  • Cisgénero – identifica-se o género atribuído à nascença com base nos genitais e papéis sociais. É a divisão social mais forte nos humanos e normalmente não é questionada ou assumida publicamente, pois é tida por garantida ou por defeito consoante o sexo:
    • Homem
    • Mulher 

 

No entanto, há excepções à regra (cerca de 0,1 a 0,6% da população) e nem toda a gente se identifica com o género de nascença:

  • Transgénero – não se identifica com o género atribuído à nascença com base nos genitais e papéis sociais; pode incluir ou não a condição conhecida como disforia de género, “tratável” através de terapia hormonal e cirurgias de redesignação sexual: 
    • Homem trans (designado do sexo feminino à nascença)
    • Mulher trans (designada do sexo masculino à nascença)

 

Nem todos os homens ou mulheres trans têm de fazer obrigatoriamente terapia hormonal ou cirurgias, tal depende do grau de desconforto com o seu corpo e o desejo de passar socialmente por homem ou mulher. O termo “transexual” está em desuso, mas designa alguém que é transgénero e já fez cirurgias de redesignação sexual.

Dentro do termo “transgénero” pode-se ainda incluir os géneros não-binários, que são pessoas que podem também ter ou não disforia de género, embora menos frequente, e podem apresentar-se externamente de forma perceptivamente binária ou não-binária. Para algumas pessoas é apenas uma tomada de posição, pois não querem ser vistas pelas lentes da sociedade em relação ao seu género percepcionado, pelo que tomam a liberdade de se auto-identificar com outro termo para se libertarem dos estereótipos, papéis sociais, comportamentos, expectativas de vestuário, etc. associados a um género binário, por não se reverem neles. Podem preferir o uso de pronomes ou marcadores de género neutros, em línguas com pronomes ou género gramatical binário. No entanto o género gramatical (ou classe nominal) é uma categoria linguística e não está totalmente relacionado com sexo biológico ou género social. Podemos então subdividir assim:

  • Género não-binário – termo genérico para alguém que não se identifica com o género atribuído à nascença nem com os papéis sociais, roupas, comportamentos, etc. associados ao seu género e que prefere ser visto, tratado ou lido por uma lente não binária. Um estudo no Brasil em 2021 encontrou que 1,2% da população se declara não binária ou trans.
    • Bigénero/ pangénero (identificação com dois ou mais géneros) 
    • Terceiro género (designações variáveis para pessoas com géneros ambíguos, consoante a cultura; e.g. hijras no subcontinente indiano, pessoas dois-espíritos nos ameríndios norte-americanos, fa’afafine em Samoa, kathoey na Tailândia, muxes no sul do México, baklas nas Filipinas, etc.); hoje em dia estas pessoas seriam consideradas mulheres trans ou gays mais efeminados.
    • Género fluido (variação na identificação e expressão ao longo do tempo)
    • Agénero/género neutro (sem identificação de género)
    • Demigénero (ou identificação parcial com dois géneros, binários ou não) 

Com base na expressão de género, isto é, como a pessoa se apresenta exteriormente ou se veste, podemos ter uma expressão tipicamente:

  • Masculina
  • Feminina
  • Andrógina (mista ou ambígua)
  • Travesti (veste roupas do género oposto, ocasionalmente)

 

Com base nos papéis de género podemos ter uma vastidão de comportamentos, papéis sociais e etiqueta, expectativas sociais e estereótipos que variam num espectro e de sociedade para sociedade e variam também ao longo do tempo. Algumas das coisas ou tendências podem ter uma explicação biológica, mas a maioria é cultural e altamente variável, porém ao longo do século XX cristalizaram-se muitas normas sociais e de etiqueta, especialmente no mundo ocidental, pelo que foram as seguintes as normas ou estereótipos criados e esperados devido ao machismo, segregação de género, religião ou cultura:

  • Homem – veste azul, camisa, gravata, fato, usa cabelo curto, gosta de máquinas, desporto, actividades físicas ou radicais, lutas, diz palavrões, bebe álcool, não mostra sentimentos frágeis, é forte, corajoso e activo, etc.
  • Mulher – veste rosa, usa saia, vestido, flores, usa cabelo comprido, fica em casa, a costurar e cozinhar, não faz atividades perigosas, não diz palavrões ou bebe muito álcool, pode mostrar sentimentos frágeis, é fraca, tímida e submissa, etc.

 

A questões de género surgiram com os movimentos sociais reformistas ao longo do século XX, como os direitos de sufrágio/voto para as mulheres, a emancipação da mulher na sociedade e no mundo laboral, os direitos reprodutivos, a liberdade sexual e de vestuário, e caminharam lado a lado com outras lutas contra a opressão e extermínio, como as minorias étnicas (judeus, afro-americanos) e as minorias sexuais (gays, lésbicas, bissexuais). As pessoas não binárias sempre existiram, embora talvez não tivessem termos para se auto-identificarem nem liberdade para se exprimirem livremente.  

Existe uma inter-relação entre sexo e género, e os dois são facilmente confundidos. O género binário é fruto de uma visão social hierárquica e simplista, que força normas rígidas a homens e mulheres. O género é usado como arma política para intimidar adversários e criar o pânico social, com falsas ameaças de que as crianças estariam em perigo com o evoluir das normas sociais. O famoso “dividir para conquistar”. Foi daqui que surgiu o termo “ideologia de género” criado pelo Vaticano nos anos 1990. Começou a circular na América Latina por entre as igrejas católicas e evangélicas e adoptado pelo Congresso Mundial de Famílias, especialmente em 2017, quando representantes de Trump se encontravam a assistir.

Uma visão diferente do tradicional binarismo é vista como uma ameaça por partidos ou sectores conservadores da sociedade, quando na verdade a verdadeira ameaça é a rigidez imposta pelas religiões que leva a uma compreensão parcial do mundo e das sociedades humanas e produz discriminação, segregação e violência. É um facto que a rigidez e imutabilidade das religiões tem conduzido a segregação, estagnação e violência. Uma visão rígida do que constitui uma família tem origem nas sociedades judaicas, cristãs e islâmicas (as chamadas religiões abraâmicas). A noção de família variou ao longo da história e a própria espécie humana começou em grupos ou clãs mais abrangentes do que pai, mãe e filhos, em que as crianças nunca precisaram de ter uma figura masculina e uma figura feminina. Tinham várias figuras masculinas e femininas e todos – avós, tios, irmãos, primos, amigos, vizinhos – contribuíam para a comunidade e para a educação da criança e para o seu desenvolvimento pessoal. 

O género é performativo, segundo Judith Butler. Não é fixo ou estável na sociedade. Enunciados performativos (cf. filósofo J. L. Austin) são frases ou discursos que concretizam algo de facto no mundo real para além de meros sons de fala. Quando um padre ou jurista diz a frase “declaro-vos marido e mulher” a partir desse momento muda algo no sentido legal e real. A mesma coisa se passa com o género, a partir do momento em que, pela criatividade humana, surgem palavras para descrever realidades diferentes das duas caixinhas binárias de comportamentos sociais, passamos a criar uma nova realidade, a reformatar as categorias que havia. As caixinhas de “homem” e “mulher” podem intersectar-se (cf. diagrama de Venn) ou afastar-se, ou ainda novas caixinhas podem surgir. 

A realidade mudou a partir do momento em que pessoas LGBTI+ começaram a falar, dizer-se diferentes, tomar novas acções, mostrar-se, exprimir-se – aí uma nova realidade foi fundada e continua a ser. As coisas mudam quando alguém surge e se mostra diferente. Nós, humanos, somos criadores da realidade, alteramos o que nos rodeia. Agora já há inclusive alguns dicionários que já reflectem a realidade do quotidiano e já definem mulher como alguém que vive e se identifica com o género feminino mesmo que tal não tenho sido o sexo atribuído à nascença (Cambridge dictionary, 2022). 

 

Como abordar esta nova dinâmica? Onde começa e acaba a minha liberdade?

As liberdades e direitos individuais são muito importantes para a dignidade humana para que nos possamos exprimir ao máximo das nossas capacidades e para que não vivamos com medo, ódio ou opressão que não nos farão viver e providenciar o máximo de nós para a sociedade. Se é difícil respeitar a identidade de alguém, e mais difícil será mudar a nossa linguagem por isso, pensemos que também tivemos de mudar a nossa linguagem para falar de pessoas negras e de outras raças, caso contrário seremos ofensivos. Se queremos liberdade para sermos quem somos, então também devemos ser pela liberdade de outros serem como quiserem. Também é necessário a empatia e a capacidade de ouvir e dialogar, pois se só gritarmos e vocalizarmos a nossa discórdia, então não conseguiremos ter uma conversa com ninguém e seremos excluídos. Temos de nos permitir a ser desafiados e pensar de outras formas. Se algumas liberdades forem suprimidas, abre-se caminho para que outras também o sejam. Lembrem-se que ninguém na comunidade LGBT+ quer mudar as crianças, reverter a ordem social ou mudar as maiorias. Apenas queremos respeito e liberdade para sermos quem somos, sempre com diálogo e sem violência ou ódio. 

 

Rodrigo Pereira

3 Comentários

  • Anónimo

    Acho que tudo isso esbarra na terceira questão que faz, a mulher para variar é a que é descriminada com isso, e altamente prejudicada.

    É que são mais uns homens com pipis a dizerem que são outra coisa qualquer que vão depois competir com as mulheres por profissões, competir com elas em desportos de forma desigual, etc… vão roubar-lhes novamente o trabalho, regalando novamente as mulheres para segundo plano, pois mais uma vez competem para perder com os homens que dizem que não são homens, só porque acham que não são e ninguém deve de ter uma palavra a dizer em relação a isso.
    O que mais me surpreende é as tais feministas que não gostam de homens depois estarem ok com homens que dizem que não são homens, ou se preferir são mulheres com pipis.

    Toda a vida civilizacional vejo as mulheres em constante luta pelos seus direitos e igualdades e isso dos géneros é só mais um novo obstáculo, a somar a tantos outros como a religião islâmica por exemplo.
    E isto em 2025!

  • James Mendes

    Percebe-se agora porque há 12% de leitores deste site que se dizem votantes do Chega… Comentários anónimos qualquer um faz… De certeza que são bem mais do que 58% de bots…

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