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Ligamos a televisão e o telejornal despende mais de uma hora com a Jornada Mundial da Juventude (JMJ). Poderíamos falar do financiamento que este evento obteve, proveniente dos nossos impostos, contudo, existem muito mais provas de que não vivemos num estado verdadeiramente laico, pois quando entramos num hospital, vemos os santos e as cruzes penduradas em muitas das salas e quartos. Quem foge da norma, teme encontrar alguém fundamentalista, que lhe critique as tatuagens ou a orientação sexual e não faltam relatos sobre isso mesmo.

Na verdade, questiono se existe tanto interesse por parte dos telespectadores em ver cinquenta peças sobre a Jornada – será que 90% da população portuguesa tem esse interesse? Ou, tal como eu, só ligaram a televisão às 14h20, para poder ver as notícias sobre a guerra na Ucrânia, a inflação e a chegada da equipa feminina de futebol ao aeroporto?

Vamos, então, ao discurso do papa Francisco, que colhe simpatia e antagonismo, mas que, nestas Jornadas, referiu que a Igreja Católica é «lugar para todos.» Será mesmo? De acordo com os registos bíblicos, era essa a mensagem transmitida por Jesus Cristo, o judeu mais famoso de sempre e que, nem sequer, era cristão. Ele chamava para si os mais pobres, as mulheres, os renegados e proclamava uma mensagem inclusiva. Após a morte de Jesus, foi o «apóstolo» Paulo, inimigo do cristianismo e, mais tarde, convertido, quem escreveu contra as relações homossexuais, pois os «efeminados não herdarão o reino dos céus» (I Coríntios 6: 9-10). Com o passar dos séculos, o cristianismo propagou-se e afastou-se do seu contexto primitivo: se as mulheres tinham um papel de destaque, deixaram de o ter e passaram a ser dominadas pelos homens, remetidas ao silêncio (ver “Historia breve del cristianismo”, de José Orlandis). A Igreja Católica Apostólica Romana, como instituição, não poderia estar mais afastada dos ensinamentos de Jesus Cristo e a sua história comprova-o.

Entrevistámos diversos jovens gays e bissexuais que participam na JMJ e são uníssonos aos afirmarem que «Deus é amor e acolhe todos», por isso sentem-se confortados por poderem participar nesta iniciativa e viverem estes dias em comunhão. Um dos jovens, catequista e bissexual, presentemente numa relação com um rapaz, afirma que a comunidade arco-íris «perde credibilidade ao aumentar a sigla LGBTQIA+», pois ganharíamos mais se simplesmente «normalizássemos as relações homossexuais e lésbicas.» Este jovem pede-nos para que não divulguemos o seu nome e sublinha: «a minha fé não influencia a minha sexualidade, o receio que tenho relaciona-se com a sociedade, pois sinto que ainda há crimes de ódio, apesar de percepcionar uma maior aceitação. A minha orientação sexual é algo íntimo, apesar de me mostrar no mundo digital, não me sinto tão confortável a dar o nome na comunicação social, tenho receio que isso me feche portas no futuro.»

«a minha fé não influencia a minha sexualidade, o receio que tenho relaciona-se com a sociedade, pois sinto que ainda há crimes de ódio, apesar de percepcionar uma maior aceitação. A minha orientação sexual é algo íntimo, apesar de me mostrar no mundo digital, não me sinto tão confortável a dar o nome na comunicação social, tenho receio que isso me feche portas no futuro.» - jovem participante na JMJ sob anonimato

Ora, se por um lado afirma que se sente aceite e protegido na sua paróquia, não deixa de confirmar que a homofobia existe, como tal, o seu discurso acaba por se tornar num contrassenso, pois todos os direitos das minorias LGBTQIA+ foram conquistados, numa luta de séculos, nada nos foi entregue de forma gratuita, porque alguém, num belo dia, acordou e disse: «Vamos aprovar o casamento homossexual!»

O discurso destes jovens tem a sua beleza, porém, não deixa de ser utópico, acreditam num mundo de paz e de aceitação de todos para todas, porém, esquecem-se de que há realidades diferentes e para isso basta mudar de paróquia, de país, de continente. Não podemos sentar-nos confortavelmente e dizer: «o mundo é lindo, sou aceite», quando na cidade ao lado há quem se sinta perseguido.

Não podemos sentar-nos confortavelmente e dizer: «o mundo é lindo, sou aceite», quando na cidade ao lado há quem se sinta perseguido.

Conhecemos católicos inclusivos, que defendem a igualdade de direitos e que acreditam numa modernização dos dogmas da Igreja, porém, esta Jornada já deu diversos exemplos da intolerância que se esconde abertamente (antítese propositada) e enumeramos:

  1. Um jovem que ergue uma bandeira trans e é interpelado por um grupo de pessoas que lhe diz que não o pode fazer, por estar a fazer a «apologia da ideologia trans
  2. Um grupo de católicos invade, como forma de protesto, uma Eucaristia da comunidade LGBTQIA+, munidos de crucifixos.
  3. Numa entrevista um outro jovem afirma que as crianças, vítimas de abusos sexuais, por padres católicos «se puseram a jeito.»
  4. Em pleno recinto da JMJ um jovem passa por outro que ergue uma bandeira trans e sinaliza com o isqueiro que quer incendiar a bandeira trans.

Voltando aos telejornais e às horas ininterruptas de transmissão, talvez sirvam para mostrar os dois lados da moeda e que o céu e o inferno coabitam no seio da Igreja Católica. Respeitamos a fé de cada pessoa, contudo, que ela não sirva para atacar e prejudicar a existência dos demais.

 

Márcia Lima Soares, Doutoranda em Estudos Medievais, autora do livro “A Ervilha Congelada”, professora, escritora e activista. @marcialimasoares_

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