Navegante Estelar – também conhecida por João Pedro – é uma parcela de cosmos que se manifestou de forma física no corpo que habito, corpo esse que socialmente deu lugar a uma pessoa que se identifica (segundo as informações que tem à sua disposição actualmente) como pessoa trans-não-binária, poli-demi-sapio-pansexual. Habito este plano – nesta forma – há 32 anos do calendário gregoriano; nasci no Porto, no dia 2 de Março de 1990, mas não considero que pertença a essa cidade ou a outras onde tive oportunidade de habitar, por muito que delas goste, daí que quando me perguntam de onde sou, responda: Sou do Cosmos.
Quando é que te apercebeste que eras uma pessoa não binária? Como foi esse processo?
Dei-me conta da possibilidade de ser uma pessoa não-binária numa das aulas que tive na especialização sobre identidade de género que fiz em 2018, aos 28 anos, por conta de ter ouvido a pessoa professora a falar sobre não-binaridade. Em todo o rigor, foi um daqueles momentos em que senti que cronos parou o tempo; só consegui voltar à aula alguns momentos depois para levantar o braço e pedir uma explicação mais profunda sobre o significado daquela terminologia sobre a qual nunca tinha ouvido falar; até esse momento já teria por essa altura transitado sobre as possiblidades de ser uma pessoa “homossexual” (na altura era a terminologia que conhecia e hoje em dia está datada), ou gay (chapéu de chuva que nunca senti que me fizesse jus), ou pessoa transexual (que é também uma terminologia desadequada e que deve ser incluída na palavra Trans) que me levou cerca de dois anos a procurar compreender derivado dos questionamentos a que me sujeitei, mas entretanto percebi que não seria o meu caso dado que fui fazendo pazes com o corpo que habito e com as formas que este tem. Assim sendo a terminologia Não-Binária e mais tarde (acerca de dois anos) Trans-Não-Binária – cuja a afirmação é bastante recente – foi o lugar onde me passei a encontrar com maior conforto, sendo que tenho plena noção de que as terminologias e os sentires podem alterar-se e fluir para lugares distintos dos atuais dependendo dos rumos pelos quais for navegar adiante e os processos de “coming out” ou “letting in” pelos quais ainda vier a passar.
Que liberdade sentes ao expressar-te da forma como fazes?
A forma como expresso íntima, pessoal e socialmente quem sou lembra-me muitas vezes que ao fazê-lo estou a impactar direta e indiretamente as vidas e existências de tantas outras pessoas que vivem ao mesmo tempo que eu vivo, que honro as de quem veio antes de mim e que planto sementes para as que vierem depois; creio muitíssimo que uma relação sã, íntegra e profunda consigo mesme e com quem se é, tem efeitos em toda a rede de ligações/relações nas quais nos movemos, e nesse sentido, quanto mais se habitar um lugar de resolução interna e externa, melhor e mais manifestado é o potencial da sociedade que se constrói a cada momento.
Enquanto pessoa não binária que dificuldades sentes no teu dia-a-dia? Questões concretas como: situações laborais, em questionários, em lojas, em serviços públicos, etc.
Noto as principalmente no que toca àquilo que se conhece nos dias de hoje como “misgendering” e aos caminhos problemáticos onde pode levar como o da disforia de género, a título de exemplo.
Aborrece-me profundamente que ainda se continue a perpetuar a noção de se inquirir o género ou o sexo em questionários, preenchimento de inquéritos, fichas de identificação e outros formatos semelhantes, principalmente quando essa informação é completamente irrelevante para a situação.
No meu caso específico, é frequente as pessoas que não me conhecem ou que são resistentes, atribuírem-me o género masculino como forma de facilitar da sua interação para comigo, independentemente da expressão de género não concordante que têm diante de si; tenho plena noção de que isso acontece devido ao desconhecimento que possam ter em relação a estes assuntos e ao conforto social do qual não querem prescindir (consciente ou inconscientemente).
Seria muito mais simples e inclusivo, em detrimento do condicionamento social, do comodismo e do facilitismo que este movimento veicula, que estejamos dispostas a questionar e a indagar conjuntamente sobre como as pessoas se identificam independentemente dos corpos que habitam, ou que possamos assumir que habitam através da sua expressão de género.
Seria muito mais simples e inclusivo, em detrimento do condicionamento social, do comodismo e do facilitismo que este movimento veicula, que estejamos dispostas a questionar e a indagar conjuntamente sobre como as pessoas se identificam independentemente dos corpos que habitam, ou que possamos assumir que habitam através da sua expressão de género.
Se isso não te perturbar podes expor algum caso de discriminação em concreto que tenhas vivido?
A discriminação é em várias medidas constante dado que muitas vezes não me apresento socialmente – segundo um olhar externo ao meu – como seria expectável que um corpo como o que habito se apresentasse, portanto é um assunto que venho vindo a desconstruir e sobre o qual me tenho vindo a debruçar para que me impacte cada vez menos, dado que compreendi que não estou disponível para diminuir a minha expressão pessoal em favor da manutenção de estruturas e posturas sociais com as quais não quero compactuar por toda a repressão que exercem sobre quem não conforma com as expectativas.
Num sentido prático, lembro-me de uma vez estar acompanhada de um amigo (identifica-se como homem gay/queer e com pronomes masculinos), numa volta a casa e de termos sido abordadas por uma pessoa, no metro, que procurou ridicularizar a nossa existência lançando palavras jocosas e desagradáveis no nosso sentido, fazendo sentir nitidamente desconfortáveis não só nxs, mas também muitas das pessoas que estavam ao nosso redor.
Tire-se da ideia que o proconceito e a discriminação afeta e impacta exclusivamente as pessoas que possam pertencer ou identificar-se com a comunidade/coletivo LGBTQIAPN2+; isso é uma falácia que precisa de ser desconstruída dadas as consequências nefastas que tem para a sociedade e para a manutenção de discursos opressivos.
Que recomendações farias a entidades públicas para sensibilizar as pessoas para o não binarismo de género?
Creio que a educação é uma das grandes chaves que temos à nossa disposição neste momento – como o é também em relação a muitos outros temas (idadismo, capacitismo, sustentabilidade, xenofobia, racismo, feminismo, política, economia, entre tantas outras áreas) – portanto ter esta forma de conhecimento e de existência, assim como a variedade de conceitos que lhe dão corpo (agénero, género-fluído, género-não-conformante), disponível de forma ampla, desconstruída e desestigmatizada, nas escolas, nos colégios, nas faculdades, nas empresas (privadas e públicas), nos colectivos locais, associações, centros de cultura será sempre um óptimo movimento de mundo que tornará a sociedade muito mais inclusiva, agregadora e integradora da real diversidade que nos constitui. Sendo que com isso muitas mais de nós poderiam habitar-se com muito menores índices de trauma, dor e dificuldade e poderíamos contribuir genuinamente para formas de estar muito mais sãs e dirigir recursos para outras áreas nas quais sentíssemos carência (diminuição de desigualdades sociais, investimento em estruturas de energia renovável – genuinamente acessível, doença mental, saúde preventiva).
Creio que a educação é uma das grandes chaves que temos à nossa disposição neste momento.