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“A saúde trans não pode ser um rodapé nem um manual de boas práticas”

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Nas últimas semanas temo-nos deparado com casos de constrangimentos de acesso à vacinação por parte de pessoas trans, sobretudo, por não existirem estudos suficientes sobre os riscos da vacina Janssen nestas pessoas. Sabe-se que esta vacina não é recomendada de ser administrada a mulheres cis com menos de 50 anos.

Ary Zara e Brian Campos foram dois dos casos destas situações. Ambos referem que se apresentaram nos respectivos centros de vacinação com conhecimento prévio da recomendação da não vacinação com a Janssen, mas sem ideia de como iria decorrer o processo e a triagem. Porém, tanto Ary como Brian depararam-se com vários constrangimentos nesta situação.
Brian afirma: “Eu já estava um bocadinho nervoso, porque já tinha ouvido falar que existiam certas vacinas que não eram recomendadas a alguns sexos biológicos.” Por este motivo, no dia da administração da vacina, Brian contactou o seu cirurgião, que recomendou que levasse uma vacina indicada para a sua idade e para alguém do sexo biológico feminino. Contudo, Brian ia com a expectativa de que fosse realizado algum processo de triagem em que fosse possível identificar e resolver esta situação, algo que posteriormente se apercebeu que não acontecia.

 

Ary Zara

Ary Zara


Também Ary defende que bastava haver inclusão no processo de triagem/questionário, o que seria possível apenas com uma questão, para que as pessoas trans não estivessem sujeitas a esta situação.
A ambos foi exigido que comprovassem o que diziam (serem pessoas trans), e embora este tipo de exigência lhes tenha parecido despropositada, uma vez que não acontece exigirem a uma pessoa cis que prove que o é, não queriam arriscar os seus processos de vacinação.
Ambos conseguiram ter a capacidade de lidar com o sucedido da melhor forma possível e saírem dos centros de vacinação com “esta batalha ganha”. Contudo, não deveria ser necessário alguém ter de se expor e lutar por um direito inerente à saúde, algo transversal a todas as pessoas sem excepção.
A resiliência e persistência de Ary permitiram-lhe lidar com esta situação: “eu sabia que não ia sair dali sem ser vacinado com a vacina indicada para mim. Estou a chocar contra um sistema que não me inclui.” Ary viu este acontecimento como uma oportunidade de passar informação, de educação e de reformulação de um sistema que ainda é retrógrado.

 


Também Brian refere já ter alguma estrutura emocional que lhe permitiu lidar com esta situação, algo que não seria possível se estivesse no início do seu processo e alerta para a gravidade disto acontecer a alguém nessa situação e/ou que não tenha apoio familiar, estando, portanto, numa significativa situação de vulnerabilidade: “Eu sei o impacto que aquele tipo de situação pode ter numa pessoa, principalmente numa pessoa trans”. Também Ary diz: “Há pessoas trans que estão fragilizadas, com depressão, em processo de descoberta e é claro que estas coisas podem ser uma grande queda”.

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Brian Campos 

 

Brian decidiu no imediato que iria partilhar a situação que tinha acabado de viver, de forma a possibilitar que esta informação chegasse a mais pessoas trans e as conseguisse ajudar, pelo menos a estarem mais preparadas. Outro objectivo era o de possibilitar uma maior consciencialização junto de alguns profissionais de saúde, algo que se veio a verificar pelo feedback que tem tido.

 


Para Brian, estas situações acontecem por falta de pensamento: por vezes não se pensa nas minorias, na forma de as incluir e de lhes facilitar algumas situações, como o caso deste processo. Falta incluir estas questões nos planos curriculares actuais e formar os profissionais que já estão no terreno. Ao analisar o que lhe aconteceu percebe que: “Os profissionais de saúde e o próprio processo de triagem não estavam adequados para lidar com uma pessoa trans que entrasse naquele centro de vacinação.”
Ary partilha da mesma perspectiva e também decidiu de imediato que queria partilhar o que se tinha passado com esperança de ajudar outras pessoas trans a terem força para reproduzirem este comportamento e não serem vacinados com uma vacina que pode não ser a mais indicada. “E acima de tudo fazer com que o vídeo onde partilhei o sucedido fosse visto pelo maior número de pessoas, por um médico, uma médica, enfermeiros, alguém da recepção dos centros de vacinação”, afirma.
Para Ary, estas situações ainda acontecem porque a sociedade não compreende a diferença entre sexo e género e porque: “Os profissionais de saúde não têm formação para lidar com pessoas trans e os que têm parece-me que só têm devido à vontade de aprender e de se querer informar. Não há propriamente um incentivo destes conteúdos na formação destes profissionais. Tem de existir saúde trans e a saúde trans não pode ser um rodapé nem um manual de boas práticas. A saúde trans de ser estudada”.

“Os profissionais de saúde não têm formação para lidar com pessoas trans e os que têm parece-me que só têm devido à vontade de aprender e de se querer informar. Não há propriamente um incentivo destes conteúdos na formação destes profissionais. Tem de existir saúde trans e a saúde trans não pode ser um rodapé nem um manual de boas práticas. A saúde trans de ser estudada”.

 

Bruno Maia - foto: Ana Mendes

Bruno Maia.  Crédito: Ana Mendes


Na perspectiva do médico Bruno Maia, a invisibilidade de pessoa trans no contexto do planeamento e das acções no domínio da saúde deve-se à discriminação: “Não quero com isto dizer que nós, profissionais, somos todos iguais ou que a culpa é deste ou daquele indivíduo. Mas somos pessoas que vivem na mesma sociedade, no mesmo país que todos os outros. E transportamos para a nossa prática os mesmos preconceitos e estereótipos que existem fora dos cuidados de saúde. O mesmo sucede com as autoridades e estruturas dirigentes na nossa área. As questões trans nunca são encaradas como prioridade e perante uma falha ou problema, são sempre relegadas para o último lugar da fila. Na formação dos médicos, por exemplo, as questões da diversidade sexual e de género até podem fazer parte do currículo, mas são sempre em modelo “opcional”. Tenho feito várias sessões sobre o tema pelas escolas de medicina, muito participadas por jovens com uma enorme vontade de fazer diferente. Mas só lá estão os que querem. E esses, à partida, até serão aqueles que mais se educaram sobre o tema. Por isso, não me surpreende que uma pessoa trans chegue a um centro de vacinação e encontre um profissional que nunca se tenha cruzado com uma pessoa trans e não saiba como agir.”

 

Miguel Saraiva - Projecto Anémona

Miguel Saraiva - Projecto Anémona

Para o médico Miguel Saraiva, membro do Projecto Anémona, o qual tem começado a receber vários pedidos de ajuda e esclarecimento relativamente à vacinação em pessoas trans: “Falta fazer imensa coisa. Temos imenso trabalho pela frente. O fundamental neste momento é uma educação das pessoas do que é ser transgénero, quem são estas pessoas e o que precisam. Nós enquanto profissionais de saúde estamos formatados para encontrar patologia e para tudo aquilo que nos for estranho temos de "curar" ou "emendar" alguma coisa. Mas quando falamos de cuidados de saúde nas pessoas trans, e aliás as guidelines científicas internacionais assim o determinam, estamos a falar de uma condição de saúde e não de uma doença. É preciso mudar o nosso método de actuação, o nosso paradigma, e como abordar uma pessoa trans.”
Tanto Bruno Maia como Miguel Saraiva defendem que é crucial e determinante existir formação de saúde trans para os profissionais de saúde e que esta não pode depender apenas da vontade e interesse de alguns. Para o médico do Projecto Anémona: “Precisamos de infra-estruturas e espaços seguros, de educação (formar estudantes, profissionais de saúde, internos e especialistas) e de equipas motivadas para trabalhar nesta área. É nestas três prioridades que deve estar o nosso foco.”

 

Jéssica Vassalo e Paula Monteiro

 

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