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Quem escreverá novas “cartas para Gisberta”?

cartas para gisberta

Em 2019, a Invictas promoveu a iniciativa “Cartas para Gisberta”, convidando mulheres trans a escreverem àquela que foi a sua amiga querida, a colega na adversidade, a inspiração para a luta. Neste dia em que lembramos o seu brutal homicídio às mãos de 14 rapazes do Porto, o dezanove.pt convida as pessoas trans a renovarem a iniciativa, apelando ao envio de novas cartas para publicação no site. Para que, hoje e sempre, a memória de Gisberta continue viva.

O projecto Invictas surgiu em 2019 e definia-se como um «jornal com recorte de género», propondo-se a retirar da invisibilidade as histórias das mulheres da cidade do Porto. No editorial do projecto, criado no âmbito do Mestrado em Ciências da Comunicação da Universidade do Porto, afirma-se o especial relevo atribuído às «histórias das imigrantes que vivem no Porto, [dando-se] espaço para que elas mostrem como lidam com uma sociedade ainda fortemente patriarcal estando em uma posição que carrega vulnerabilidade – a de estrangeira». A sua equipa era constituída por cinco pessoas de origem brasileira.

O dezanove.pt esteve à conversa com Leilane Menezes, uma das autoras, a par de Janaína Silva, do artigo onde foram publicadas as primeiras quatro cartas para Gisberta, em Junho de 2019. Leilane explica que as cartas permitem conectar um passado trágico com as inquietações do presente, avaliando o caminho percorrido, e documentam um trauma histórico que assim mais dificilmente se apaga – a violência estrutural contra as pessoas trans. Os testemunhos destas quatro mulheres mostram uma Gisberta que se preenche de vida muito para lá da sua condição de vítima e mártir, sem esquecer o crime transfóbico. São escritas por amigas próximas, por camaradas suas na luta pela sobrevivência, por pessoas envolvidas no movimento de luta que a sua morte incendiou. As cartas resgatam o corpo mutilado das páginas da secção criminal dos jornais, onde ficou gravado na consciência colectiva, e mostram um ser humano inteiro – a Gisberta mulher, migrante, performer, precária, sem-abrigo, colega, amiga, inspiração – o que mais sublinha o horror da atrocidade. 

Para que o seu nome continue a ser projectado nas nossas vidas e aclamado nas nossas marchas, o dezanove.pt endereça o convite à comunidade trans para que escrevam novas cartas para Gisberta. Até dia 22 de Março, poderão enviá-las em formato digital para o email dezanovept@gmail.com. As cartas podem ou não ser assinadas e, idealmente, o seu tamanho não deverá ser superior a uma página. Serão publicadas no site pouco depois de terminar o prazo para envio.

A inspiração para a iniciativa de 2019, conta-nos Leilane, veio da sua participação no tour feminista do Porto, que terminava precisamente no edifício Pão de Açúcar, onde Gisberta foi assassinada. Nessa altura, os participantes do tour eram convidados a escrever a giz no chão uma mensagem, lembrando a quem passava pela rua que naquele local uma vida tinha sido barbaramente subtraída – mas não o nome, mas não a memória do crime. Leilane interessou-se pelo caso e acabou por desenvolver a sua investigação de mestrado sobre este tema, que resultou na dissertação «Jornalismo e transexualidade: A construção da personagem Gisberta na mídia portuguesa».

As quatro cartas publicadas nessa altura foram escritas por mulheres trans que admiram Gisberta, apesar de algumas nunca terem trocado uma palavra com ela. Rute Bianca foi a sua melhor amiga. Conheceram-se em Lisboa, quando ambas faziam shows em espaços nocturnos. Além desta carta, Rute gravou em vídeo uma sentida homenagem à memória da amiga.

Carta 1 - Rute Bianca

 

Francisca Solange Martins é advogada e dedica-se à defesa de mulheres vítimas de violência. A segunda carta a Gisberta é assinada por si.

Carta 2 - Francisca Solange

 

Segue-se a carta de Ângela Sampaio, activista pelas lutas feministas, trans e antirracistas:

Carta 3 - Ângela Sampaio

 

A pessoa autora da última carta escolheu o anonimato. É importante aqui salientar o apoio prestado pelo Centro Gis, uma estrutura da Associação Plano I, que facilitou o envolvimento das pessoas trans utentes do centro nesta iniciativa.

Carta 4 - Anónima

A reedição das “Cartas para Gisberta” é especialmente pertinente numa altura em que é evidente uma tentativa de menorizar o impacto que o assassínio de Gisberta teve na sociedade portuguesa e, em particular, no Porto. Como resposta directa a esse acto bárbaro, a 8 de Julho de 2006 realizou-se a primeira Marcha do Orgulho do Porto (MOP), onde estiveram presentes cerca de 300 de pessoas. A última edição da MOP, em 2022, contou com mais de 10.000 participantes, numa altura em que se multiplicam as marchas do orgulho LGBTI+ por todo o país. O activismo pela defesa dos direitos e visibilidade das pessoas trans teve na reacção à morte de Gisberta um momento de refundação. Doze anos depois, era aprovada em Portugal a lei da autodeterminação da identidade de género

A petição “Por um Porto que se lembre de Gisberta Salce Júnior”, promovida pela MOP em 2021, pretendeu coser a memória do crime e da luta do movimento trans na toponímia da cidade (sobre a defesa da exclusão do sobrenome “Júnior” da proposta, veja-se a argumentação da artista Hilda de Paulo). Defendia-se que assim este  momento chocante mais dificilmente se diluiria no esquecimento dos seus habitantes. A pretensão encontrou a resistência do executivo camarário e da Comissão de Toponímia nomeada pela Câmara Municipal. Com a mudança de composição deste órgão consultivo, conseguiu-se a aprovação da inclusão do nome de Gisberta numa lista de designações para atribuição a novos arruamentos. No entanto, não sabemos ao certo quando tal virá acontecer, e não é de afastar a possibilidade de se encontrarem medidas dilatórias que vão adiando a concretização desse objectivo.

Quando se assinalaram dez anos do homicídio transfóbico cometido no edifício Pão de Açucar, o dezanove.pt convidou várias pessoas activistas a escreverem sobre o caso, a figura e o legado de Gisberta. Mas é a comunidade trans que ainda hoje sente na pele a violência diária que ela também sentia. São as suas vozes que mais temos de escutar para as bem saber defender. Fazemos nossas as palavras da Invictas: «A memória de Gisberta segue viva. [Convidamos a] escreverem cartas para Gisberta, como forma de dialogar sobre mudanças que ocorreram no país nesta última década e para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça».

 

Pedro Leitão