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O Desassossego da Noite, Marieke Lucas Rijneveld

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"Ninguém conhece o meu coração. Está escondido debaixo do meu casaco, da minha pele, das minhas costelas. O meu coração foi importante durante nove meses dentro da barriga da minha mãe, mas assim que saí da barriga, toda a gente deixou de se preocupar se ele batia vezes suficientes por hora. Ninguém se preocupa quando pára ou quando começa a bater depressa, dizendo-me que deve haver algo de errado"

 

 

Marieke Lucas Rijneveld (1991) é considerada como uma das grandes vozes da nova literatura neerlandesa tendo entre vários prémios alcançado a distinção do Man Booker International Prize em 2020, tornando Rijneveld, com apenas 29 anos, o mais jovem nome de sempre a vencer este galardão. Rijneveld é não só a primeira pessoa escritora neerlandesa a receber o prémio, a mais jovem mas, também, a primeira pessoa não-binária a ser distinguida. 

Inspirado num episódio autobiográfico, tendo como pano de fundo a zona rural dos Países Baixos nos anos 1990, Rijneveld coloca-nos diante a história insólita e até macabra de uma família que perde uma das suas crianças num acidente por afogamento numa tarde gélida de inverno, o pequeno Matthies. Matthies é o filho mais velho de um casal conservador e devoto da Igreja, irmão de Cas, Hanna e Obbe, tendo a sua morte, logo no início do livro, marcado todo o curso da história, não só o Natal daquele ano em que somos arremetidos, como o futuro de toda a família castrada pela angústia e desgosto daquela perda. 

A história é narrada por Hanna, uma jovem de 12 anos que nos conta de forma pormenorizada e criativa as rotinas, os medos, as travessuras e a solidão daquele que viria a ser o seu mundo antes, durante e após a morte de Matthies e do desmazelo iniciado pelos pais após a perda do irmão mais velho. Percebemos desde o início da narrativa o tom estranhamente adulto com que muitas das passagens nos são descritas e partilhadas, consequência porventura de uma educação forçosamente autónoma e precoce, obrigada a encontrar formas de superar a negligência, a violência e o fascínio pela morte com que a autora constrói a personagem junto com os seus irmãos.

Ao longo de toda a obra somos remetidos para os pormenores da vida no campo, dos afazeres de uma família de vaqueiros, da construção de uma infância rodeada por animais e pela natureza assim como da devastidão dos sucessivos vaticínios que pairariam sobre a quinta: a morte de uma criança, a desintegração familiar, o medo da peste que recai sobre os animais da quinta. 

Esta é uma leitura onde o desconforto é certo, do início ao fim da história. Onde o maior prazer que retiro destas duzentas páginas será, porventura, a argúcia literária e rigor gráfico com que Rijneveld nos descreve as suas memórias de infância sem com isso darmos pelo tempo passar. Do throwback a uma cultura dos idos anos 1990 que tantas vezes deixa saudades. Do recordar daquelas que foram, também, as nossas primeiras experiências sexuais, da descoberta dos corpos e suas metamorfoses em inícios de puberdade.

O desassossego da noite é uma leitura que não sendo fácil nos convida a experimentar outras experiências na procura pelo amor. 

 

ISBN: 9789722072007

Editor: Dom Quixote

Páginas: 272

 

Daniel Santos Morais é mestre em Sociologia pela Universidade de Coimbra. Feminista, LGBTQIA+, activista pelos Direitos Humanos. Partilha a sua vida entre Coimbra e Viseu. É administrador do site Leituras Queer.