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“O fado é muito bicha e sempre foi, só faltava alguém pegar nele dessa maneira”

Fado Bicha Lila Fadista e João Caçador.jpg

"Lila é uma fadista com pêlo na venta e no peito também. Casaco tigresse puído e copo de vinho barato na mão. Batam palmas e cantarolem com ela que o fado também é transgressão e alvoroço” é uma das muitas descrições que encontramos sobre o mais recente fenómeno da música queer portuguesa: o Fado Bicha.

 

Mas Lila, de 32 anos e com uma licenciatura em Psicologia, não está sozinha nesta empreitada. A seu lado está João Caçador, de 28 anos, natural de Lisboa, licenciado em Jazz e Música Moderna (guitarra eléctrica). Vamos conhecê-los. E, silêncio, que se vai cantar o fado.

 

dezanove: Para quem está lá em casa expliquem-nos lá o que é isto do Fado Bicha, quem são, quando fizeram nascer o projecto, o que têm estado a fazer a nível de agenda e onde vos podemos encontrar.

Lila Fadista: Olá para quem está lá em casa :) O Fado Bicha viu a luz do mundo em Março deste ano. Foi uma ideia que eu criei, como um canal para as minhas aspirações artísticas e activistas envolvendo o fado e uma vontade de torcê-lo para que ele acolhesse a minha identidade queer, como gay, bicha, agender, mas também outras identidades queer que eu quero fazer representar, narrativas que queria contar. Eu nunca tinha cantado fado em público e nunca tinha feito nada que se assemelhasse a drag, por isso foi uma dupla estreia – uma maluqueira temerária que eu nunca pensei que viesse a crescer desta maneira. Começou no FavelaLx, uma bar pequenino em Alfama que estava a dar palco a novas/os artistas de Lisboa. Um amigo meu, o Adam Moço, começou a fazer actuações lá. E, de repente, havia um espaço onde era possível eu experimentar uma versão queer do fado e uma pessoa para me ajudar com a parte visual e plástica, que não é o meu forte, mas que eu via como importante. Foi assim espontâneo, bastou uma conversa com o dono do bar, o John: marcou-se a data, encontrei uma faixas instrumentais na net, o Adam foi comigo comprar roupa e maquilhagem, emprestou-me uma peruca e lá estava eu, em plena Alfama, em drag, a cantar fado fora de tom.

Foi assim espontâneo, bastou uma conversa com o dono do bar, o John: marcou-se a data, encontrei uma faixas instrumentais na net, o Adam foi comigo comprar roupa e maquilhagem, emprestou-me uma peruca e lá estava eu, em plena Alfama, em drag, a cantar fado fora de tom.

O Adam e o John foram fundamentais no processo e não sei se isto teria acontecido sem esta feliz confluência. A primeira vez foi só para amigos (sem os quais também teria sido impossível) e um ou outro turista acidental. A partir daí, a ideia começou a intrigar as pessoas, até que chegou ao João e ele se identificou com o projecto, com o meu objectivo e perguntou se eu queria um guitarrista. Era tudo o que eu mais queria! Com o tempo, criámos uma química fantástica, tornámo-nos amigos e partilhamos uma vontade para este projecto, um ímpeto de destruir para reconstruir, de ousar. Eu tenho muitas dúvidas e inseguranças e ele apoia-me muito. Muitas vezes eu não sei exactamente o que estou a fazer em palco, mas aquilo sai-me, as palavras (cantadas e faladas) e o olhar dele dá-me segurança. Ele é um músico profissional e eu tenho crescido muito artisticamente graças ao João. Nos últimos tempos temos cantado em sítios diferentes, bares principalmente. Em Novembro, fomos cantar a um cabaré em Bruxelas e participámos no festival ¿Anormales?, no Disgraça. Em Dezembro, dia 16, já temos marcada Uma Noite com Miss Moço e Lila Fadista no 49ZDB.

 

Fazia falta assumir a questão LGBT+ no fado em Portugal? É um regresso às origens transgressoras do fado?

João Caçador: Mais do que fazer falta, era urgente! Desde o início da sua história que o Fado namorou temáticas de emergência urbana: o amor, a saudade e a cidade, mas nunca foi expressão de intervenção. Ou seja, apesar de grande parte dos personagens do fado serem marginais e pertencerem às franjas da sociedade, as suas histórias raramente subvertiam ou rompiam com os padrões. Os poetas foram criando e recriando temáticas do quotidiano com mais ou menos criatividade, mas assentes no que era normativo, esperado e aceite socialmente. No que diz respeito às questões LGBT+, desde o início que existiram poetas, músicos, fadistas e acima de tudo público LGBT+ e essa expressão nunca foi retratada. O fado sempre foi heteronormativo. Nunca conheci uma letra que falasse, específica ou abertamente da história de amor entre dois homens ou duas mulheres. Ora se o fado é uma expressão artística da vida porque é que nunca deu existência poética a estas formas de amor, a esta forma de sentir saudade e a este lado da cidade?

 

Desde o início que existiram poetas, músicos, fadistas e acima de tudo público LGBT+ e essa expressão nunca foi retratada.

 

Lila: Eu acho fascinante o ambiente inicial do fado, como o João descreveu. Também gosto da solenidade que ele adquiriu com o tempo, a apologia do silêncio, da experiência íntima. Mas não gosto do elitismo que o fado vestiu. A ideia de o fado ser cantado em bordéis, por rufias, marujos, prostitutas, os mais destituídos, seduz-me. Quis trazer um pouco disso também com o nosso projecto. Acho que o fado é muito bicha e sempre foi, só faltava alguém pegar nele dessa maneira.

 A ideia de o fado ser cantado em bordéis, por rufias, marujos, prostitutas, os mais destituídos, seduz-me.

 

Lila, nos teus fados não alteras a voz. Não queres que a Lila Fadista seja uma drag queen, é isso ou há mais razões?

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Lila: Alterar, como? Piar fininho? Ahah! Não, a Lila Fadista sou eu, não é uma personagem, é uma expressão minha. Claro que é com a minha voz que canto, não tenho outra. Mas a pergunta é interessante… eu ainda não sei como me categorizar. Porque olho para outras queens e percebo que de facto eu não jogo o mesmo jogo, não tenho as mesmas competências e muitas vezes sinto que não tenho a mesma linguagem também. Aprendi a tirar prazer de me maquilhar (e faço-o melhor agora do que ao início), mas uso sempre as mesmas jóias e tenho quatro ou cinco figurinos diferentes. Atrevi-me a fazer um lipsynch no último evento no 49ZDB, mas não é bem a minha praia. E nem tem de ser. Respeito imenso o trabalho drag e prefiro deixá-lo para quem o sabe fazer bem.

 

 

 

 

 

O Fado é algo tão sério que não pode ser bicha? Há umas semanas houve quem atacasse online o vosso projecto porque considerava “uma grotesca brincadeira de Carnaval” ou que “desvirtuava o que grandes poetas nos deixaram como herança”. Alguns comentadores pedem “respeito” por algo que é Património Imaterial da Humanidade. “ O que têm a dizer a essas pessoas e a outras que pensam como elas e que populam as redes sociais?

João: Existe sempre um sentimento de rejeição a tudo o que foge da norma ou não corresponde ao que é esperado e suposto. É histórico. Tenho pena que com o acesso à informação que existe hoje em dia e a imensidão da história da arte que progrediu até aos dias de hoje, seja ainda tão difícil conceber um exercício do ponto de vista artístico tão simples. Juntar Fado com Bicha é justamente isso mesmo, é uma subversão de conceitos, é a apropriação de uma palavra que é vista como pejorativa – Bicha – tornando-a um instrumento de luta e visibilidade. No entanto, acho que o objecto do preconceito ultrapassa a expressão Fado Bicha e centra-se no facto de ser um homem a cantar fado vestido de mulher. Ao contrário do que muitos pensam não é uma forma de desrespeitar o fado, mas sim a legitimidade de que qualquer artista tem na sua forma de expressão. Assim como há fadistas que não usam xaile, fadistas loiras, fadistas que usam vestidos exuberantes, também há a Lila Fadista. 

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Negar-lhe essa possibilidade é negar o fado e a própria arte. Sem dúvida é aqui que reside o fascínio de ser pioneiro e sobretudo, precursor, o que revela uma enorme coragem. Relativamente ao respeito por algo que é Património Imaterial da Humanidade, acho que nem sequer é uma questão. A própria convenção para a salvaguarda do património feito pela UNESCO responde a qualquer dúvida: “O património cultural imaterial, transmitido de geração em geração, é permanentemente recriado pelas comunidades e grupos em função do seu meio, da sua interacção com a natureza e a sua história, proporcionando-lhes um sentimento de identidade e de continuidade, contribuindo assim para promover o respeito pela diversidade cultural e a criatividade humana”. O que nós constatámos nos nossos concertos e nas mensagens que recebemos é que havia uma parte significativa das pessoas que não se revia no fado e nas suas histórias e que através de nós estão a descobri-lo e a identificar-se.

 

Tenho pena que com o acesso à informação que existe hoje em dia e a imensidão da história da arte que progrediu até aos dias de hoje, seja ainda tão difícil conceber um exercício do ponto de vista artístico tão simples.

 

E como têm reagido os fadistas tradicionais ao vosso trabalho?

João: Aqueles com quem falei pessoalmente sobre o assunto não se identificaram com o projecto.

Lila: Eu só pude perceber as reacções dos fadistas tradicionais que deixaram mensagens na nossa página, nos primeiros dias. Esperávamos resistência, claro, e desdém. Mas as mensagens ultrapassaram as minhas expectativas em nível de agressividade e expressão de ódio. Claramente, tocámos num ponto muito sensível e estas pessoas sentiram-se atacadas, sentiram que estamos a corromper deliberadamente algo que para elas é muito querido e intocável. Eu consigo entender isso. E não é para as chocar que eu faço isto. É para tocar e dar força a todas as outras que nunca se reviram no fado e que dificilmente vêem as suas experiências retratadas na música popular. Bichas, o fado também é nosso!

 

E não é para as chocar que eu faço isto. É para tocar e dar força a todas as outras que nunca se reviram no fado e que dificilmente vêem as suas experiências retratadas na música popular.

 

Lila, ficaste em terceiro lugar no concurso Miss Drag Lisboa. Como correu a experiência?

Lila: A experiência foi muito gira! Pelo que expus acima, eu tinha inicialmente declinado o convite do Adam para participar como concorrente. Mas depois de acompanhar as preparações do evento, entusiasmei-me e senti que gostaria de fazer parte daquele grupo. Algumas das outras concorrentes eram pessoas que eu tinha acompanhado desde o início ou quase, como a Paula e a Sylvia. E seria um acontecimento simbólico para fechar o ano em que comecei o Fado Bicha com elas, quase como a turma de 2017. Adorei lá ter estado e partilhado a experiência com elas, houve imenso companheirismo nos bastidores e a recepção à nossa canção foi muito boa também! Assim que o verso "A Lila Fadista, bicha activista" gerou imensas palmas e gritos eu percebi que tinha feito bem em participar :) 

 

 

 

Fotos:

Lila: Adam Moço

Lila Fadista e João Caçador: Charles Chojnocki

 

Entrevista: Paulo Monteiro

 

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