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Damas da Noite e a apoteose da teatralidade

A peça segue para Ponte de Lima, dia 20 de Maio.

Damas da Noite - ©️ Vítor Ferreira

A crítica assistiu ao espectáculo na abertura do Festival do Avesso, na Ilha da Madeira, em Setembro de 2021. 

Damas da Noite nos recebe dentro de uma grande festa: um show conduzido por duas habilidosas Drag Queens da noite de Lisboa: Dennis Correia (Aka Lexa Black) e Pedro Simões (Aka Filha da Mãe). O público se abre, como água quente abre a ostra, dança, bate palmas. Um início assim, nas alturas, pode ser também arriscado. Como conduzir o público para um próximo passo de uma delicada proposta? Mas a mudança de energia, uma das marcas do bom teatro, se estabelece com maestria. Estamos dentro do mundo proposto por Elmano Sancho, autor, director e actor, em que o gatilho de uma expectativa frustrada – os pais esperavam uma menina, Cléopâtre, mas nasceu um menino – faz da transformação tema e linguagem da peça, permitindo que antevejamos imagens do inconsciente, fantasmas familiares e fragmentos de si.

Desde a primeira aparição do corpo que parece aprisioná-lo, em contraste com a exuberância das drags, entendemos que Elmano carrega um peso-sombra, uma armadura invisível, mas sensível. À não-presença física de Cléopâtre na família, soma-se uma mãe morta. A ausência da mulher material se revela como mote na trama que podia ser pessoal – ou uma “farsa de Elmano Sancho”, como quer o subtítulo do trabalho – mas que a transcende. A impessoalidade com que Elmano bem escolhe para se colocar em cena o transforma em psicopompo de algo maior, nestes tempos em que as performances do masculino e feminino são questionadas ao extremo e grandes mudanças numa das grandes feridas da humanidade – a vivência da sexualidade e da identidade sexual escolhida – estão na ordem do dia.

As drags – afirmação da presença? – conduzem o parto de Cléopâtre-Elmano numa maiêutica pop. E o público testemunha uma espécie de ritual artístico em que os desejos pedem manifestação e os duplos – no plural, como entendemos ao longo da elegante dramaturgia – vão ganhando voz. Um processo em que os clichês são transpostos exatamente pelo caminho perigoso de se mergulhar neles, numa encenação repleta de paradoxos. E que não esquece o sentido político destes actos de presença-presentificação – Lexa Black ocupa o espaço do teatro como preto, drag, imigrante. Filha da mãe, com seu corpo fora dos padrões de magreza. Elmano reflecte que na sua nova boca de mulher a palavra perderá força: seus argumentos serão frágeis.

Todos os elementos da cena são potências para a transformação que pede a trama, desde o cenário – que nos remete ao teatro de revista, o mundo dos casinos de vedetas celebrados em Hollywood na primeira metade do século XX, em efeitos metateatrais de celebração cénica. A luz nos presenteia revelando os esboços de formas fluídas do inconsciente e a exuberância da sexualidade festiva, os sonhos manifestos. Os figurinos-máscaras em alguns momentos assumem mesmo o protagonismo da cena. Acrescentam sentidos, quebram nossas expectativas, revelam nossos próprios clichês, marcam transformações e posições das personagens, sexualidades. Viram motores da fábula: um dia o filho, vestido com as roupas da mãe, recebe um beijo na boca do pai perturbado pela doença. Na trama, nos permitem ver ainda, no caso de Elmano, várias facetas que estão como um segundo plano em seu corpo: do menino desencaixado jogador de futebol, a um certo Frank Sinatra português em armadura-smoking, até finalmente a esperada Cléopâtre manifesta: uma drag loira, elegante e um quê de anacrónica, muito particular. Um trunfo da peça é optar por processos de transformação – seguidos de performances musicais e coreográficas, na maioria das vezes – que se realizam e se desfazem, como neblina, no momento seguinte. 

Leda Black e Filha da Mãe

A dramaturgia é construída num jogo de tensões: à subtileza de algum processo de cura que parece que somos testemunhas, dentro dos signos da noite pop, somam-se cenas em tons operísticos e de extrema plasticidade, como o sofisticado jogo anjo branco e negro no balanço, em cena dos excelentes actores-drags.

A peça nos surpreende ainda nos momentos finais e nos propõe uma inversão de direcção, vertical: a aparição da mãe como Virgem Maria, projectada, em um diálogo sensível, iconoclasta, em que os silêncios e lacunas falam tanto quanto às palavras, sintéticas. Palavras, aliás, em francês, talvez para marcar melhor outra mudança de posição: agora temos, em primeiro plano, o menino Elmano, que passou sua infância na França. “Mamãe, é verdade que os anjos não têm sexo?” Uma conversa singela, esférica, que vai da densidade à leveza, passando pela mãe humana que reprova o filho pelo seu comportamento vergonhoso – a mãe tradicional latina em seu carácter castrador – à mãe espiritual, que fala a Deus sobre o seu filho, sempre. “E o que ele responde?” pergunta, ávido, Elmano. “Nada!”. E a plateia experimenta a fórmula já clássica de um bom teatro vivo: o tocar o sagrado e cair por terra, imediatamente. 

“Mamãe eu posso ser um anjo?” Não agora, só depois de sua morte, ressalta a mãe que lhe entregou a existência num corpo que não lhe contém. Ela desaparece. O show acabou. Sobra o adulto diante de nós, de pés no chão, num figurino de jogador de futebol que não lhe cabe também, inadequado como um anjo na terra…

 

Espaço Cénico Samantha Silva; Desenho de luz Alexandre Coelho; Assistência de encenação Paulo Lage.

 

 

Viviane Dias

Dramaturga, directora, actriz e jornalista. Doutoranda na ECA-USP e Paris 8. Uma das fundadoras da Estelar de Teatro, companhia com sede em São Paulo, o Teatro Estelar. Estará em Portugal com o seu novo trabalho – o monólogo Tarsila – a partir deste Outono.

Crítica publicada inicialmente no blog Dionisíacas - Leituras Críticas de peças

 

 

A próxima exibição da peça "Damas da Noite, uma farsa de Elmano Sancho" será a 20 de Maio, às 21h30, no Teatro Diogo Bernardes, em Ponte de Lima.

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Fotos: Vítor Ferreira 

 

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