"Gaycation”: O outro lado do paraíso
Começou como um programa de viagens centrado na comunidade LGBTQ, sugerido por Ellen Page, mas resultou num olhar bem mais vasto, incisivo e urgente sobre discriminação e resiliência. Ao fim de duas temporadas, "Gaycation" já merece ter lugar entre a melhor televisão dos últimos tempos.
A ideia surgiu de uma proposta de Spike Jonze a Ellen Page, com o realizador a desafiar a actriz para um novo programa da rede Viceland, da qual é director criativo. E foi colocada em prática a partir de 2015, quando Page e um dos seus melhores amigos, o jornalista e curador Ian Daniel - ambos homossexuais - começaram a percorrer vários destinos turísticos por todo o mundo, daqueles muitas vezes associados a férias de sonho.
Mas em vez de um relato de viagens paradisíacas, "Gaycation" acabou por se afastar da ligeireza de outros formatos televisivos dedicados a férias exóticas, tendo muito pouco de montra turística do circuito LGBTQ. A dupla que conduz os espectadores propõe.antes explorar como é ser gay, lésbica, bi ou transexual em países tão diferentes como o Japão, Brasil, Jamaica ou EUA, destinos da primeira temporada da série, ou a Ucrânia, Índia, França e novamente os EUA - mas com ênfase na realidade sulista -, na segunda época.
O cenário, como cada episódio de cerca de 45 minutos vai revelando, está longe de ser idílico, embora o braço de ferro entre a intolerância e os focos de resistência seja variável de local para local, dos quais emergem obstáculos sociais, culturais, políticos ou jurídicos que continuam a condicionar (e em alguns casos, a punir de forma gritante) a liberdade da comunidade LGBTQ (e não só, como olhares laterais sobre o lugar da mulher na Índia ou o de muitos imigrantes nos EUA também atestam).
Esse ponto de situação raramente terá sido feito de forma tão imersiva como em "Gaycation", através de um formato que combina os moldes do programa de viagens com linguagens do documentário ou até do reality show (aqui numa manobra arriscada, mas bem sucedida, como quando acompanha um rapaz japonês que revela à mãe que é homossexual sem cair no voyeurismo de outras propostas).
A complementar esta abordagem está um rigor jornalístico evidente na pesquisa dos muitos locais em foco, sempre aberta a várias a vozes, incluindo as mais contraditórias. Se é verdade que Ellen Page e Ian Daniel denunciam alguns casos de atentados à dignidade humana, não se ficam pelo apontar de dedo e parecem movidos por uma curiosidade genuína que os leva a tentar dialogar com entidades que são, em parte, responsáveis por essas situações ou que as defendem e encorajam. É o que acontece quanto abordam figuras políticas ou religiosas dos países por onde vão passando (destaque para as questões lançadas por Page a Ted Cruz, com especial eco nas redes sociais), embora o contacto mais desconcertante talvez seja o que a dupla tem com um ex-polícia homofóbico que revela ter assassinado vários homossexuais no Rio de Janeiro.
Além do Brasil, onde muitas pessoas trans têm a vida particularmente dificultada (apenas com tréguas parciais no Carnaval), os retratos da Índia e da Jamaica serão os mais vincados pela intolerância, com a pena de morte a surgir entre as ameaças. Mas nem aí "Gaycation" abdica da empatia e da esperança como motores de um activismo nada fundamentalista e que escapa ao refúgio na vitimização.
Ellen Page e Ian Daniel celebram conquistas em todos os destinos, por mais pequenas que sejam, com cada testemunho angustiante a ser complementado por outros de triunfos individuais, familiares ou comunitários. E quando a dupla partilha algumas das suas próprias experiências, à medida que vai conhecendo as de terceiros, o impacto emocional destas viagens torna-se ainda mais forte. Um dos melhores exemplos é quando Ian regressa à sua cidade natal, no interior dos EUA, e encontra adolescentes tão homofóbicos como os seus colegas durante os tempos de estudante - mas a forma como lida com eles comprova que está aqui uma série capaz de ajudar a mudar alguma coisa.
Esclarecedora sem cair em excessos didácticos, contundente sem ser sisuda (e com viragens quase sempre oportunas para momentos espirituosos), "Gaycation" só se torna desequilibrada em episódios talvez demasiado digressivos, que acabam por deixar algumas figuras e situações por explorar ao terem de saltar para outras. Mas é uma limitação compreensível no meio de tantos retratos conseguidos, sobretudo quando Page e Daniel vão perdendo alguma timidez inicial e revelam maior desenvoltura ao conjugarem os papéis de visitantes, apresentadores, entrevistadores e repórteres (e se o amigo da actriz parece uma presença acessória nas primeiras viagens, conquista o seu espaço nas últimas, chegando a conduzir alguns capítulos sozinho).
Complementadas por dois especiais (dedicados ao atentado na discoteca Pulse, em Orlando, e à administração Trump), as duas temporadas de "Gaycation" podem partir de um universo aparentemente restrito - aqui com uma oportunidade de visibilidade rara -, mas não há motivo para não chegarem a um público mais amplo. Até porque não é fácil encontrar televisão tão socialmente consciente enquanto se mostra capaz de entreter e de comover desta forma - e sempre sem perder de vista o motivo da viagem.
"Gaycation" foi exibida em Portugal no Odisseia.
Classificação: 4/5 estrelas
Artigo de Gonçalo Sá, autor do blogue gonn1000.blogs.sapo.pt/