A visibilidade é muitíssimo importante, e tenho lutado por isso, mas tem sido um caminho tortuoso.

Fiz o coming out há relativamente poucos anos, e a razão principal de não ter ocorrido mais cedo, deve-se essencialmente à visibilidade. À visibilidade que era inexistente. A visibilidade é muitíssimo importante, e tenho lutado por isso, mas tem sido um caminho tortuoso. Mesmo hoje em dia, e para uma pessoa com a minha profissão, sou actriz, a visibilidade seria óbvia, se tivesse a oportunidade de participar em novelas, séries ou filmes, portuguesas ou estrangeiras, ou até dobragens, que fazia regularmente até me deixarem de convidar. Seria importante aparecer, e falar-se sobre isso, tornar a coisa natural. Só que as minhas participações têm sido residuais, e mesmo já sendo residuais são por vezes eliminadas, o que torna difícil uma visibilidade constante e consistente, que seria importantíssima - teme-se o que não se conhece. Fui incompreendida toda a vida por mim própria e pelas outras pessoas, que por falta de informação, me mantive no anonimato e numa vida de mentira. Só tomei consciência da minha verdadeira identidade numa fase bem avançada da vida, há relativamente poucos anos. Achava-me deficiente.

Fui incompreendida toda a vida por mim própria e pelas outras pessoas, que por falta de informação, me mantive no anonimato e numa vida de mentira. Só tomei consciência da minha verdadeira identidade numa fase bem avançada da vida.

Tenho participado em diversas mesas redondas, conferências, programas de televisão e podcasts, com a genuína vontade de dar visibilidade à comunidade à sociedade em geral, e para que outras pessoas da comunidade que estejam em questionamento, ou no início de um processo de coming out ou transição, se sintam acompanhadas e compreendidas, para poderem o mais cedo possível viver em pleno as suas vidas.

Embora muito já tenha sido feito depois do 25 de Abril, principalmente nos últimos anos a nível legislativo - a autodeterminação, a possibilidade de alteração do nome e género nos documentos de identificação, incluindo a Certidão de Nascimento, o respeito pela autodeterminação nas escolas e todos os lugares públicos, a proibição de terapias de conversão, etc. Essa informação é essencialmente conhecida por pessoas da comunidade. Continua a haver um grande desconhecimento sobre comunidade pela sociedade em geral. Tenho essa convicção pelas mensagens que recebo ou por perguntas que me fazem em sessões de esclarecimento.

Portanto a prioridade deveria ser a presença de pessoas trans nos meios audiovisuais, que conseguem promover uma grande visibilidade, é esse o caminho, mas para tal será necessária coragem, des produtores e realizadores e des directores das estações de televisão. A partir do momento em que se torne habitual aparecer-mos na indústria do audiovisual, isso passará a ser normal e a fazer parte do dia a dia das pessoas como outra coisa qualquer. Tenho uma enorme esperança nas gerações mais novas.

Acabei por desistir e optar por serviços de saúde fora do país. Porque são situações muito urgentes das quais depende a nossa vida. Acaba por ser o reflexo de um SNS com problemas financeiros e com falta de equipas médicas e enfermeiros.

Relativamente aos serviços de saúde e outros serviços públicos, tudo corre dentro da normalidade, a minha médica de família é uma pessoa extraordinária. No entanto, se atentarmos aos serviços de saúde específicos para a comunidade, quando se pretende fazer uma transição e seguir um tratamento hormonal, ou efectuar alguma cirurgia, há ainda muitos problemas, desde grandes filas de espera, a um protocolo, muitas vezes, demasiado rígido, e incompetência das pessoas que prestam o atendimento, havendo evidentemente excepções. No meu caso pessoal comecei por recorrer ao SNS - uma conquista do 25 de Abril - mas acabei por desistir e optar por serviços de saúde fora do país. Porque são situações muito urgentes das quais depende a nossa vida. Acaba por ser o reflexo de um SNS com problemas financeiros e com falta de equipas médicas e enfermeiros, onde as administrações não vêem estes serviços como prioritários porque a percentagem de pessoas trans na sociedade é pequena.

Maria João Vaz, actriz e autora do livro Memória de Uma Epifania e Outras Histórias, ed. Leya.