Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Dezanove
A Saber

Em Portugal e no Mundo

A Fazer

Boas ideias para dentro e fora de casa

A Cuidar

As melhores dicas para uma vida ‘cool’ e saudável

A Ver

As imagens e os vídeos do momento

Praia 19

Nem na mata se encontram histórias assim

Condiciona quem quer avançar ou condiciona quem fica estanque?

correntes d escrita

As bodas de prata do Correntes d’Escritas, Encontro de Escritores de Expressão Ibérica, tiveram a intenção de celebrar os 50 anos do 25 de Abril.

 

Maria do Rosário Pedreira, poeta, editora e praticamente “da casa” (já que, à semelhança de outros escritores, é presença assídua no festival literário) interveio numa conversa cujo título era “Não Há Machado que Corte a Raiz ao Pensamento”. A frase pertence ao poema Livre, de Carlos de Oliveira, que declara que a ditadura pode controlar tudo, mas o pensamento permanecerá sempre em liberdade. 

Dado o contexto, passemos aos factos. 

Maria do Rosário Pedreira, na sua intervenção, afirmou existir uma “cultura de cancelamento que, aparentemente bem-intencionada, perdeu o bom senso e começou a condicionar o que dizemos, o que escrevemos, o que lemos”. Contou, então, o que apelidou de “o meu próprio calvário”, tendo em conta “os excessos que roçam o ridículo”.

Não foi a única palestrante das onze mesas de discussão a entender ser este o assunto mais pertinente, o problema mais aflitivo da nossa democracia e a censura mais feroz à sociedade nos dias de hoje. Não foi a única, mas foi a mais apaixonada.

Com duplo dom, da escrita e da oratória, sem surpresa e com invejável facilidade, conquistou a plateia.

“Durante a pandemia publiquei um romance holandês intitulado O desassossego da noite, da autoria de Marieke Lucas Rijneveld que, numa entrevista ao The Guardian, se tinha confessado uma pessoa não-binária. Comprei os direitos porque o achei notável, sobretudo tendo em conta a juventude de quem o escrevia. Quando o romance saiu em Portugal, escrevi no meu blogue um post intitulado Uma senhora escritora e que termina assim O desassossego da noite revela um talento invulgar em alguém tão jovem. Uma menina que é realmente uma senhora escritora!”.

O post deu origem a uma notificação da Comissão para a Igualdade de Género ”para eu apresentar a minha defesa, pois tinha sido objecto de cinco queixas. Afinal, eu, que julgava ter feito um elogio, chamara menina e senhora a uma pessoa não-binária, o que era um insulto”. Maria do Rosário Pedreira, virando-se para Pedro Abrunhosa, também convidado dessa conversa do Correntes d’Escritas, disse: “então o Pedro Abrunhosa pode cantar talvez foder, só quero o teu corpo e o teu sexo e não lhe acontece nada e eu, que uso uma expressão sóbria e elogiosa, quase sou processada?”

A editora prossegue com a história do seu “calvário”: “não imaginam o que foi escrever a biografia de Marieke Lucas Rijneveld na badana do seu segundo romance sem recorrer nem ao masculino, nem ao feminino. Não imaginam a ginástica necessária para escrever as linhas deste texto que se referem a essa pessoa”. 

Essa pessoa. Pronomes, nomes e adjectivos inclusivos arrancados a ferros. Uma espécie de birra, como o Zezinho que se atirou para o chão, a berrar num parque infantil, quando a mãe lhe exigiu que pedisse desculpa ao Chiquinho porque lhe ter chamado nomes. O Zezinho lá acabou por pedir desculpa, mas só porque a mãe o obrigou. O Chiquinho merecia era até ter ouvido mais!

Assim parecia Maria do Rosário Pedreira em frente a 400 pessoas, apenas com mais eloquência e sem se ter atirado para o chão. 

Não fica completamente claro se os exemplos que usou no seu discurso foram escolhidos para justificar a afirmação “excessos que roçam o ridículo”, aproveitando e fazendo uma espécie de bingo e divertindo o público, ou se Maria do Rosário Pedreira considera que todas as histórias que contou podem ser postas no mesmo saco de ter chamado menina e senhora a Marieke Lucas Rijneveld.

Fica aqui um desses exemplos de “excessos que roçam o ridículo: “retirada uma pintura renascentista do refeitório de um dos colégios de Oxford só porque dois alunos vegetarianos alegam não conseguir almoçar de frente para as perdizes mortas”.

Maria do Rosário Pedreira não só parece não ter entendido o que poderá significar para uma pessoa não-binária ser tratada por Uma menina que é realmente uma senhora escritora, como parece confundir a igualdade e visibilidade da linguagem inclusiva com policiamento e censura, já que afirmou “além do regresso da extrema-direita estamos constantemente a ser policiados, censurados”. 

O que mais surpreende nestas declarações é a profissão de quem as proferiu. Maria do Rosário Pedreira é editora, poeta, escritora e letrista. Além de conseguir reconhecer se há mestria alheia no uso das palavras, também Maria do Rosário Pedreira é dona da arte e engenho de escrever. E literatura não é gramática, ortografia, matemática ou uma ciência exacta. Literatura é arte, emoções, são viagens no tempo e no espaço, é um convite à reflexão sobre nós e os outros, é um desafio ao desenvolvimento intelectual e emocional. Literatura é tanta coisa. Mas tenho a certeza que a literatura não é (ou não deveria ser) conservadora, chata e estanque, presa a uma receita de bolo que vai ao forno sempre na mesma velhinha e enferrujada forma. 

Porque terão tanta resistência em abraçar a linguagem inclusiva alguns escritores e escritoras do século XXI quando o seu ganha-pão é inventar palavras, animais, países e até mundos? Que literatura e linguagem confortáveis são estas a que se querem prender?

Como se podem lamentar de “condicionamento”, como afirmou Maria do Rosário Pedreira, quando estão a condicionar a existência alheia ao não a reconhecer? Marieke não é uma menina, não é uma senhora, não é uma escritora. 

Naquela tarde de fevereiro, afinal, o machado cortou a raiz do pensamento. Porque o pensamento tem género. 

 

Adriana Dias

 

1 comentário

Comentar